25. DA VÃ GLÓRIA
Quando Manuel
Laureano Rodríguez Sánchez, naquela tarde quente de 29 de agosto de 1947,
estava em seu camarim a vestir o seu flamejante traje de toureiro, ficou algum
tempo a olhar-se ao espelho, a apreciar o seu rosto magro, austero, os traços
quase esculpidos, o seu cabelo muito preto e uns olhos da mesma cor e vivos.
Contudo, estava muito longe de adivinhar como um touro, um belo miúra, Isleno
de nome, como tantos que matara fulminante e implacavelmente, o enfrentaria na
praça de touros de Linhares, em Espanha.
Ao pisar a arena,
como Manolete, o maior toureiro de todos os tempos até então, e segundo os
aficionados até aos nossos dias, foi como sempre vibrantemente aclamado de pé
pela assistência. A faena com o seu segundo touro foi como habitualmente
brilhante e impecável, Manolete obrigando o touro a passar rente a ele, antes
de marrar o pano vermelho, sem ele se mover um centímetro, sem sequer olhar o
resfolgante animal de setecentos quilos, para aflição da plateia.
Quando o toureiro
parte para a estocada final para matar Isleno, atrasa-se alguns segundos do
habitual, o touro afunda um dos cornos na veia femoral de Manolete,
provocando-lhe uma abundante hemorragia que o mata mais tarde.
Tinha então apenas
trinta anos e deixou saudades das faenas espetaculares que protagonizou durante
mais de uma década nas praças de touros de Espanha, Venezuela e México. A
comoção em toda a Espanha e América do Sul, e no mundo, foi imensa. Franco
declara três dias de luto nacional, durante semanas os espanhóis, e não só, não
falam de outro assunto recitando minuto a minuto a última faena do ídolo.
Em Portugal foi também uma choradeira geral. Clamavam: “Morte
injusta!”, “Que perda irrecuperável para a tauromaquia!”, “Que tragédia a sua
morte, tão novo e tão magnífico na arena!”, “Morreu o melhor toureiro de todos
os tempos. Não haverá igual!”, “Que pena, morrer quando era o mais notável
toureiro!”, “Era muito novo para morrer, ainda tinha muito para nos alegrar!”, etc.
e tal. É foto de capa das principais revistas e os jornais dedicam grossas
manchetes nas primeiras páginas.
Eu era jovem e
escrevia para algumas revistas, como a Horizonte e a Seara Nova, e
para o jornal de esquerda República. Numa delas, já não me lembro qual, publiquei
um artigo em que dizia que o notável toureiro morrera no local certo (a arena)
e também na hora certa (no auge da sua carreira), portanto
e indiscutivelmente fora a morte adequada. Quase fui linchado pelos numerosos fãs de
Manolete. Eu escrevera que uma estrela como ele não se pode apagar aos poucos,
tem que explodir, desaparecer num ápice. Só assim será mártir e herói, chorado
coletivamente, e perdurará na memória popular. Uma estrela de tal fulgor não
pode esgueirar-se secretamente da sua constelação, apagar-se, ficar velho e ter
uma velhice triste e amarga.
Entre parêntesis. Se conseguirem o DVD não deixem de ver Manolete
–Sangue e Paixão, com Adrian Brody como Manolete e Penépole Cruz, como
Lupe, a linda mulher da sua vida.
A propósito, lembro-me, quando há muitos anos vivia em São
Paulo, de ir às vezes com os meus amigos a um restaurante ‘mexicano’, cuja
comida era ótima. O dono teria sido toureiro e as paredes do salão estavam
literalmente forradas de fotografias dele em faenas ou aparamentado à toureiro.
Recordo ainda de uma impressionante com uma orelha de touro na mão… gotejando
sangue. E como não bastasse, ele vinha até à nossa mesa a vangloriar-se desses
seus êxitos passados, teriam sido ou não, e eu olhava para aquele gordo
derrotado, barrigudo, com o cinto abaixo do umbigo, a camisa e a roupa tão
amarfanhadas, uma figura tão distinta dos exuberantes trajes de ‘matador’, que
me dava vontade de rir. Ao mesmo tempo, tinha muita pena dele a exibir com
tanto orgulho o seu passado em fotos ruins e cagadas pelas moscas.
Porque é que James
Dean, apenas com três filmes, ficou nos anais do cinema como um ator
fantástico, que realmente foi, mas não muito mais do que outros seus companheiros,
também muito bons, que desapareceram da história do cinema. Talvez por ter
morrido ao volante de um carro, como num dos seus filmes, com apenas 24 anos e
no próprio ano desses seus filmes (A Leste do Paraíso, Fúria de Viver e Gigante).
Porque é que Marylin Monroe é tão popular hoje como em vida, quando O Pecado
Mora ao Lado era sucesso mundial. Possivelmente por estar no auge da sua
carreira aos 36 anos e ter-se suicidado de forma dramática e um pouco
misteriosa.
Ainda no cinema, não
assistimos tão recentemente ao anúncio da morte por suicídio de Philip Seymour Hoffman
e logo ao justo reconhecimento do seu mérito? Na música poderia citar Elvis
Presley e Charles Parker (Bird), com 37 anos, sem esquecer Bob Maley e tantos,
tantos outros. E na política portuguesa, Sá Carneiro? E até, antecipadamente, o
anúncio que Jon Stewart se vai retirar da televisão no pico do êxito do seu Daily Show, que manteve
por dezasseis anos, com o segmento de
humor político ‘International Moments of Zen’?
Também recordo de um
outro facto. O trânsito em São Paulo é muito ruim, como é sabido, mas ainda por
cima os carros são largados em qualquer lugar, passeios, em frente de portas de
garagens, bloqueando outros, um inferno. Até que um dia apareceu um ‘Salvador
da Pátria’: um Diretor do Departamento de Trânsito, um tal Tenente Estrela, que
declarou guerra aberta aos motoristas desrespeitadores dos bons costumes. Era
presença constante nos telejornais ou em vibrantes entrevistas e comunicados,
ou mesmo à frente das câmaras de televisão com uma sua equipa a rebocar carros
a torto e a direito, a bloquear as rodas, até a esvaziar os pneus. Um prato
cheio para os noticiários em geral, e o povinho adorava. Óbvio, não tanto
quanto os motorizados. Até que numa entrevista à TV, das muitas que dava, de
pé, exaltado, vociferando, não deu outra, tombou com um AVC e morreu frente às
câmaras. Para muitos era um herói, passou a super-herói.
Continuei assim a
defender sempre a tese de que é no auge que o artista, o ator, o trapezista, o
boxeur, o escritor, o bailarino, o músico, porque não o político e o locutor ou
âncora, se devem retirar, sem necessariamente emigrar para a chamada ‘outra
vida’. Se bem que, tendo a sorte (?) de ser de forma dramática, fica mais
garantida a saudade perene.
Há dias quando falei
a uma amiga que tinha criado uma nova editora, ela disse-me: “Oh! Mário, está
errado, já provou que é bom editor várias vezes, para quê, com a sua idade,
voltar a trabalhar?”
É facto que vendi a
Editora Pergaminho há sete anos, uma editora que, na época, mais do que uma
editorial era uma marca respeitada e de sucesso, e que vendi muito bem. Era a
altura de me retirar. Mas parei? Não, meses depois criei a Vogais &
Companhia, com o sucesso explosivo e prolongado de O Diário de um Banana, que vendi um ano depois em boas condições,
há cinco anos. Fui turista ativo durante três anos, no ano seguinte escrevi
dois romances e dois livros de contos. Depois das férias do ano passado iniciei
a ‘4Estações-Editora’ e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Ao
celebrar noventa anos. Qual a razão? Qual a lógica?
Deveria ter-me
retirado quando? Quando vendi a ‘Vogais’, a ’Pergaminho’ ou alguma das
brasileiras, talvez a ‘Fundo de Cultura’,
ainda tão celebrada?
Quero crer que voltei
por duas boas razões: Primeiro, pela minha paixão pela leitura e pelos livros,
desde muito novo, a partir dos meus oitos anos. Mas para acalmar essa paixão,
dirão, não bastaria ir de quando em quando a uma boa livraria? Sim, é certo,
isto é, seria se não houvesse uma segunda razão: do que eu gosto mesmo é de
‘criar’, sim, isso mesmo, criar, no
sentido amplo da palavra. E asseguro-lhes, nada como editarmos um livro para
sentir a força do criar. Verdade é que já criei muitos jardins, dos mais
variados tamanhos e usando as mais variadas plantas, o que sempre me deu muita
satisfação. Já construí talvez duas dúzias de casas de campo, muito diferentes
umas das outras, o que também foi um excelente exercício do criar. Assim como a
partir da terra rasa criei três urbanizações.
Nem quero falar de
minhas experiências juvenis: a produção de bijuteria em madeira, um fracasso,
mas mais tarde vi, com alegria, semelhantes em
vitrines parisienses; e uma pequena fábrica de perfumes, o de nome ‘55’
teve razoável sucesso, quase que ainda recordo o seu aroma (pesquei as fórmulas
num livro de química, alemão, em tradução espanhola).
Ao completar noventa
anos, na festa com os meus numerosos familiares, disse umas palavrinhas que se
enquadram muito bem, acho, no meu percurso de vida. Lembrei-lhes que subir a pé
pela encosta de uma montanha, como tantas vezes fiz, não é um desafio fácil. As
botas escorregam nas folhas apodrecidas e no limo, as pedrinhas atrapalham, tanto
como troncos quebrados e plantas
espinhosas e atrevidas. As trilhas por vezes são interrompidas por rochas
grandes e nem percebemos a razão, já que continuam adiante, mas é uma incerteza
angustiante procurar a continuação. A respiração fica ofegante à medida que
subimos e a mochila parece ter ficado mais pesada, mas temos que ficar atentos
ao caminho que percorremos. Com frequência enganamo-nos e entramos em veredas erradas, e por vezes temos
dificuldades em encontrar a senda certa. Caímos, esfolamos as mãos e os
joelhos, mas é preciso continuar, queremos continuar a subir, desejamos
alcançar o alto da montanha, a nossa meta.
Finalmente
conseguimos pisar no cume, sentamos numa rocha, a respiração normaliza e a
paisagem de que desfrutamos alegra-nos. Experimentamos uma sensação de vitória
e de conquista, e serenamos. Lá em baixo, no vale, estão os que não subiram e
cumprem o seu dia-a-dia. Algumas casas fumegam, as crianças a sair da escola
são apenas pontos brancos das suas camisas. Dos animais a pastar ouvimos os
bramidos, como música de fundo. Sentados e tranquilos, a sensação é tão boa que
quase esquecemos que teremos que descer e que a descida é também difícil, pouco
menos do que a subida. Mas temos que voltar para, também, irmos à nossa
vidinha.
Contudo, um bom montanhista, enquanto descansa
no alto de uma montanha, além de olhar para o vale, mira ao seu arredor a
admirar os cumes das outras montanhas em volta, algumas mais altas e certamente
de escaladas mais difíceis. Então esquece as dificuldades da subida que acabou
de vencer e prepara-se, mentalmente, para subir a que mais o desafia.
Há sessenta anos que
o meu trabalho é editar e dele tenho vivido, basicamente. Criei mais de uma
dezena de editoras, felizmente com o sucesso suficiente para serem respeitadas
pelos leitores, que é realmente o que me interessa, pois que só daí virão os
resultados. Mas como o montanhista que de um alto de uma montanha ambiciona e
propõe-se a subir outras, não ignorando nem temendo as dificuldades, decidi voltar
a editar. Criei assim a ‘4Estações-Editora’
e a sua chancela editorial ‘O Castor de Papel’. Será difícil, eu sei,
talvez esfole os joelhos ou erre a trilha, mas quero continuar. Hoje com mais
razão, pois tenho uma companheira fiel e forte para me ajudar nesta escalada, a
Ione França, a qual nos últimos vinte anos a mim se tem amparado e eu, com
amor, a ela.
Talvez seja isto que
deva responder à minha amiga. Ela compreenderá, creio.
* * *