DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

sábado, 31 de janeiro de 2015

A CASA DOS HORRORES

21.   A CASA DOS HORRORES
 Com este título li uma notícia na Visão (edição de 15/1/2015), da qual transcrevo parte: «Depois de ter acolhido presos de foro eclesiástico (até 1820), mulheres presidiárias, presos políticos do fascismo, e novamente condenados por delito-comum, a antiga prisão do Aljube, em Lisboa, vai, enfim, receber… visitantes. Tristemente celebrizada… pelas tenebrosas torturas aí perpetuadas, durante os interrogatórios da PIDE, este sinistro edifício histórico pelo menos não vai “para” condomínio de luxo.», como o foi o edifício sede da PIDE na rua António Maria Cardoso, onde não foram cometidas menos atrocidades. A notícia acrescenta: “Será, sim, convertido em espaço de memória, evocação da liberdade e da resistência à ditadura.”
    Após duas décadas sem visitar Portugal por ter emigrado, voltei a Portugal pela primeira vez era Marcelo Caetano Primeiro-Ministro. Claro, o país estava exatamente na mesma, apesar das malogradas esperanças nesse fascista, que eu não entendi porque existiram.
   Voltei de novo depois do 25 de Abril e contava encontrar grandes transformações políticas, sociais e outras. Mas não, não as encontrei, só politiquice. Como antifascista e ex-prisioneiro no Aljube, fiquei admirado por tanto o Aljube como o ignóbil edifício da António Maria Cardoso estarem ‘esquecidos’, ‘arrumados’  no sótão do passado, como tudo o que já não interessa em nossas casas, e como nos antigos romances em que alguém encontrava no sótão embaraçantes cartinhas de amor escaldante e clandestino da querida avozinha.
  Falei com alguns relevantes políticos de então, alguns meus velhos amigos da militância antissalazarista, mas nenhum deles se interessou pela minha proposta de criar nestes dois espaços, ou pelo menos num deles, o Museu da Resistência, ou como quer que se chamasse. Achei ótimo o título que a Visão escolheu: “A Casa dos Horrores”. Enfim, um espaço onde seriam expostas as técnicas e a prática de repressão e de tortura usadas pela PIDE, para permitir às gerações futuras tomarem conhecimento da história do país durante as quatro décadas do salazarismo e evitar o esquecimento dos horrores cometidos. Nada mais do que de semelhante foi concretizado em vários países democráticos.
  Voltei várias vezes a Portugal, para acompanhar os meus pais nos seus últimos anos de vida, e cada vez mais constatava que os crimes do fascismo eram tabu, deles não se falava, deles queriam apagar o acontecido pois ao mexer nisso algo poderia respingar para alguns dos do antigo regime que descaradamente já ocupavam cómodas poltronas administrativas. A classe política do país ‘dos brandos costumes’  decidira branquear o salazarismo e todos os seus crimes contra as pessoas físicas e contra o país, que o atrasaram em quarenta anos em relação aos demais da Europa democrática.
  Eu sei que na Espanha aconteceu o mesmo e com mais determinação, e que de cada vez que apareceu algum movimento no sentido de uma averiguação séria e de uma divulgação pública e de punição criminal, foi de uma forma ou outra podado. Foram encobertos e escamoteados do povo os terríveis crimes do franquismo, ocultados tantos assassinatos de inocentes, tanta crueldade contra os inimigos, afinal os legítimos representantes do povo, tantos roubos de filhos à suas chorosas mães, tantas apropriações de bens indevidas. E quando um juiz espanhol corajoso conseguiu prender Pinochet, quando este visitava Londres, foi aclamado, mas quando o vento mudou e este mesmo juiz Garzon quis averiguar o período franquista, então foi ostracizado pela classe dominante espanhola e afastado das suas funções.
  Num conto que escrevi, “O Prisioneiro”, incluído em O Contador de Estórias (4Estações-Editora), o personagem esteve preso no Aljube tendo depois emigrado e, mais tarde, já após o 25 de Abril, veio visitar Portugal com a mulher e filhos para lhes mostrar as belezas do seu país. Naturalmente não resistiu ao desejo que a família conhecesse a ‘terrível’ prisão de que sempre lhes falara, mas quando se depara com o edifício do Aljube reage assim:
 «Frente ao edifício do Aljube, salta do carro e fica parado a olhar. Não quer acreditar. Está perplexo enquanto, do passeio em frente, fixa as carcomidas e velhas paredes do prédio de que tantas vezes se recorda. Tinham passado algumas décadas e, no seu imaginário, aquele edifício tinha crescido em tamanho e em terror. Agora não é mais do que um prédio feio e degradado.
 O que o espanta é que nada assinala o que nesse edifício se passou durante tantos anos. Não há qualquer indicação de que ali estiveram presos, sem julgamento nem culpa formada, tantos milhares de inocentes e outros tantos corajosos ativistas que lutaram destemidamente contra o regime injusto. Nem uma placa pequena a assinalar. Nada. Para quem passa, é apenas um edifício público anónimo. O prisioneiro pensa que isto representa uma insensível, ou melhor, uma cobarde afronta a tantos que ali sofreram muito.
  Quando ainda no Canadá, imaginava esta visita, estava certo de naquele edifício encontrar um ‘Museu da Repressão’, ou lá como se chamasse, aberto ao público, mostrando as celas terríveis, o ‘parlatório’ em baixo, onde as famílias viam com dificuldade os presos devido a duas paredes de rede que também barravam o contacto, os WC, ou seja, como tudo era quando funcionava como prisão. Ingenuamente, o prisioneiro esperava até ver figuras de cera, de tamanho natural, reproduzindo os carcereiros, os pides e os presos, até os ratinhos e as ratazanas que ali viviam com mais liberdade que os presos.
Não fiques triste, meu querido pai, por as gerações anteriores escamotearem às mais novas períodos negros da história do país, mesmo neste caso em que foi tão longo. Aconteceu o mesmo na Espanha onde branquearam Franco e a cruel Guerra Civil, na França fizeram o mesmo com a rendição e Vichy. E assim foi em tantos outros países.
  A filha, que parecia completamente alheada, coloca a mão no ombro do pai e diz:
Na realidade, só os judeus pugnaram sempre e lutam veementemente até hoje para que o holocausto não caia no olvido, senão seria um episódio esquecido.
  O pai olha para os dois filhos com carinho.»

   Eu não só estive preso lá no Aljube, como muito antes, com 18 anos, ia lá muitas vezes para visitar o meu irmão Rui Moura que foi preso várias vezes, a última por dois anos com mais oito economistas, mas nesta altura eu já não estava em Portugal. Mas naquela a que eu me refiro, em que ele deve ter estado lá mais de seis meses, aconteceu uma situação que vou relatar, apesar de estar ciente de que os leitores não acreditarão. Mas aconteceu, é verdade, e passo a narrar.
  Um dia, ao sair da visita ao meu irmão, um homem de uns trinta anos abordou-me dizendo que queria falar comigo e convidou-me para ir com ele a um café. Estranhei, até porque ele era espanhol e achei-o com ares misteriosos e suspeitos, e decidi não lhe dar conversa. Mas fomos descendo a rua da Sé, a pé e a par, até que para me livrar dele entrei na Igreja da Sé. Estava deserta e eu sentei-me no último banco. O espanhol entrou, sentou-se noutro banco à minha frente e fez-me uma assombrosa proposta: “O seu irmão, é um resistente à ditadura, nós sabemos, e portanto deve cooperar connosco. Bastará  falar com alguns prisioneiros jovens em perigo de serem deportados, conseguir  os  dados pessoais deles, além de outros pormenores documentais, como profissão, se  serviram ao exército, se faziam algum desporto, etc.” Para tal, continuou,  assegurava-lhes que depois da documentação ser examinada e aprovada (na Inglaterra, suponho, mas não foi dito) ‘eles’ tiravam-nos do Aljube com um passaporte britânico. Em contrapartida, esses presos libertados comprometiam-se a alistar-se diretamente no 8º Exército Inglês, que estava a combater no Norte de África, sob as ordens do General Montgomery, contra Rommel, o general alemão apelidado de ‘a raposa do deserto’. Uma batalha feroz!
   O espanhol salientou que a opção era boa para o prisioneiro, pois do Aljube este seria deportado para donde ele viera assim que a PIDE o identificasse com segurança suficiente, e de lá o caminho era o dos campos de concentração, enquanto que se se alistasse no exército inglês poderia morrer, mas talvez não e então viveria livre e com a nacionalidade inglesa. Eu fiquei perplexo e desconfiado, fiquei de lhe dar resposta no dia da visita seguinte, sábado. Era quinta-feira e combinámos o encontro na mesma igreja e à mesma hora.
   Fiquei com medo que fosse uma manobra da PIDE para conseguir os dados que queria dos prisioneiros, mas a minha intuição dizia que o espanhol trabalhava para a resistência dos aliados. Também pensei que podiam querer comprometer o meu irmão e a mim, mas não via a razão, já que o meu irmão tinha sido preso sem qualquer razão, apenas pela suspeita de pertencer ao PCP. Mas, afinal, quem deveria decidir se se arriscava ou não deveriam ser os próprios presos, e não eu. No sábado seguinte, no Parlatório uma sala grande onde as visitas ficavam de pé com os presos em frente delas, mas com uma imensa tela de arame forte e malha grande a separar expus a proposta e os meus medos ao meu irmão e perguntei-lhe o que ele achava. Ele também ficou na dúvida e resolveu falar com alguns dos detidos e expor a proposta, ressaltando-lhes as débeis garantias que nós tínhamos de que fosse um plano decente. Assim, na quinta seguinte dir-me-ia alguma coisa. As visitas só eram possíveis às quintas e sábados.
  Saí, tomei muito cuidado a ver se era seguido, dei umas voltas e contravoltas e entrei na Igreja. O espanhol estava lá, no mesmo banco, e depois de eu lhe dizer a decisão do meu irmão disse que entendia as nossas dúvidas e garantiu que trabalhava para o serviço secreto inglês, que era antifascista e que dois irmãos seus e o pai tinham sido fuzilados pelas tropas de Franco. Marcámos para a quinta seguinte mas não na Igreja, era preferível o miradouro de Santa Luzia.
   Fiquei muito surpreendido quando na visita de quinta-feira ao Rui ele me passou dois rolinhos que disse terem os dados de dois presos que estavam na iminência de serem deportados. Eles sabiam que era prática corrente esse tipo de arregimentação, aliás não só em Portugal como também em Espanha.
     Nem abri os rolos, nem li os nomes. Conforme os recebi entreguei-os ao espanhol, lá no miradouro, falando alto como se estivéssemos a admirar a paisagem. Depois ele marcou um encontro para dali a uma semana, não no miradouro, mas numa esplanada mais acima.
     Por causa de ter ido acampar, só pude visitar o meu irmão na quinta-feira seguinte. O meu irmão estava feliz, na véspera os dois rapazes que tinham dado os nomes tinham sido libertados pela Embaixada Inglesa e já havia muitos mais a quererem candidatar-se ao esquema de alistamento.
  Fui muito eufórico falar com o espanhol na esplanada. Ele estava sentado numa cadeira e pareceu não querer falar comigo. Eu dei umas voltas por ali mas ele nem olhava para mim. Resolvi apanhar o elétrico. Quando subi percebi que ele também subia. Saltei na Rua Augusta e encaminhei-me para o Terreiro do Paço pressentindo que era seguido. O espanhol alcançou-me, ficou um pouco ao meu lado enquanto eu caminhava pelas arcadas e apenas disse: “Já sabes, não é? Apanha mais dados de voluntários e leva-mos à garagem do Parque Mayer na sexta da próxima semana às seis da tarde.
    Na sexta acordada fui ao encontro do espanhol levando comigo três rolinhos que o Rui na véspera me havia passado com cuidado pela tela no Parlatório. Na tal garagem estava o espanhol junto de uma camioneta fechada com altifalantes no tejadilho. Pela propaganda colada na camioneta pareceu-me ser propaganda política ligada ao governo espanhol. Como? Não sei. Apenas sei que repeti esta visita algumas vezes, em todas levando rolinhos, e que muitos dos que haviam entregado os rolinhos ao meu irmão foram libertados, outros não. Dissera-me o meu irmão que os ‘voluntários’ eram principalmente polacos, checoslovacos e austríacos.
  Um dia cheguei à garagem e a camioneta não estava nem o espanhol. Perguntei ao velho que sempre por lá andava, acho que era vigia, pelo espanhol e ele respondeu-me de modo fugidio que o Alonso (até então não sabia o nome do espanhol, e certamente não seria esse) saíra na véspera de madrugada, muito apressadamente. “Para onde?”, perguntei parvamente. “Disse-me que para Espanha”, respondeu encolhendo os ombros.
  Foi com muito desgosto que devolvi ao meu irmão os rolinhos que levara à garagem. O meu irmão olhou-me com lágrimas nos olhos e com voz embargada indagou: “E o que vou eu dizer-lhes?”, “Sei lá, diz que o contacto sumiu, mas que eu vou continuar a tentar, e vou mesmo, talvez o espanhol volte ou venha outro com aquela carripana para fazer o mesmo, ou então o esquema ficou ‘queimado’.” Ficámos os dois calados muito tempo, a olhar um para o outro sem capacidade de falar de tão emocionados. Eu estava muito pesaroso de ir desiludir aqueles três, certamente já confiantes na libertação. Mesmo que fosse para as areias escaldantes do Norte de África, para combater, sempre seria muito melhor do que um campo de concentração.
  A partir daí interessei-me muito em ver filmes e a ler livros sobre essa campanha africana que afinal Montgomery ganhou. Eu tinha participado um pouco, pensava para comigo, conseguira uns 12 ou 15 ‘voluntários’, e salvei a vida a alguns deles. E ficava muito satisfeito comigo pelo que conseguira com perseverança.
   Hoje penso que fui muito temerário, que coloquei o meu irmão em grande risco de a PIDE descobrir. E o esquema poderia ser um logro, mas felizmente não era. Uma cartinha da irmã de um dos presos assegurou de forma enigmática que o amigo estava a salvo. Não tanto, claro, o exército nazi estava muito bem equipado.
  Quem era o espanhol? O que era aquela camioneta? A verdade é que os dados eram transmitidos e recebidos muito rapidamente. Certamente teria um transmissor potente para se comunicar. E porque é que na Embaixada, apesar da minha insistência, ninguém se prontificou a receber esses dados e a conseguir os passaportes para a libertação? Ao contrário, receberam-me como a um lunático. Depois li Graham Greene e aquele comportamento passou a fazer sentido. Mas talvez seja apenas porque a literatura consegue ser para mim mais real do que a realidade.
                                                    * * *
 


sábado, 24 de janeiro de 2015

NA POEIRA DO TEMPO

  20.   NA POEIRA DO TEMPO
  Não sei porque me lembrei agora da viagem (Lisboa/Nova York/ Caracas), de que falei no blogue anterior, feita há já sessenta e seis anos. As recordações são como as nuvens, aparecem subitamente num céu límpido, avolumam-se, por vezes desfazem-se em chuvas, outras somem na profundeza azul do céu. Nem umas nem outras respeitam previsões antecipadas, aparecem e desaparecem a seu belo prazer.
   Imaginem, eu lembrar agora, com noventa anos, essa viagem que fiz com vinte e quatro anos. Certo que foi muito importante, uma virada total na minha vida, mas porque me lembro agora dela, com tanta nitidez e detalhes, tantos anos decorridos?
  Quando olho para o meu passado, e faço-o pouco, as recordações não obedecem nem a uma ordem cronológica, nem à importância emotiva, familiar ou profissional. Vêm porque vêm, e como vêm, vão quando vão.
  Quando comecei a escrever estes blogues o tema a que me propunha era o que os intitulava:  “Encantos e desencantos de um editor”.  Na realidade eu pensava escrever exclusivamente sobre os episódios bons e maus, curiosos ou divertidos, importantes e marcantes da minha  longa  vida de editor (sessenta anos). Mas com o tempo saltaram à minha memória,  e aos meus dedos, algumas cenas que nada têm a ver com a minha vida de editor mas sim com ela em geral. Ou seja na sua sequência alguns blogues revelam a minha trajetória editorial, outros apenas  algo da minha vidinha.
   A realidade é que não é fácil separar essas recordações pois umas interferem nas outras, por vezes são concomitantes no tempo e no espaço, algumas são puramente consequências de anteriores. O meu percurso foi moldado pela minha paixão por livros e viagens e pela vida, num emaranhado do qual emergem hoje cenas marcantes para mim.
Há dias revi mais uma vez o filme  Fany e Alexander,  de Bergman, em que Helena, a matriarca, e que havia sido atriz, diz que na vida representou os mais variados papéis, mas  que sempre continuou igual  a si mesma. Já a nora, Emilie Ekdahl, afirma que durante a sua vida teve que mudar tanto de máscaras que já não sabia quem era.

  Também eu, no decorrer da minha vida, fui forçado a desempenhar diversos papéis mas não mudei nem a minha maneira de ser,  nem a de pensar e agir. Máscaras, não, não usei nunca. Minto, usei sim,  mas só no Carnaval brasileiro onde não conseguimos ser nós, é uma loucura. Mas na vida, mesmo nas piores condições, nunca usei máscaras.
  Desta forma, resolvi não policiar a estrita pureza  em relação ao título do que aqui escrevo, com as antecipadas desculpas para quem não gostar.
 Mas a verdade é que este episódio que agora escrevi, mais do que os anteriores, despertou em mim a vontade de colocar no papel algumas dessas recordações do meu passado, não, claro, porque tenham interesse para os outros, ou valor literário, mas porque vai ser curioso, gratificante, ou não, para mim recordá-las. É óbvio que possivelmente estão diferentes, partes esquecidas e outras adulteradas, involuntariamente ou não, pela ação mágica do filtro do nosso ego e da nossa consciência.
  As lembranças são como o pentimento na pintura, uma paisagem pintada sobre uma outra (porque ao pintor não lhe interessa mais o quadro anterior, talvez por não o achar bom) arrisca a que as imagens inferiores, antigas, subam e alterem as recentes, com resultados extravagantes.
  Para colmatar esses erros e deturpações poderia, claro, deveria até, pesquisar, informar-me com parceiros desses momentos, para evitar muitos dos erros ou omissões, trocas de datas e nomes, até de personagens. Mas decidi que isso não interessa porque não será um livro de memórias, autobiográfico ou histórico. Não é sequer um livro, nem um Diário. Será, sim, como que um filme sem guião, com realizador e atores não profissionais, um filme experimental e neorrealista.
   Não posso dizer se a minha trajetória de vida foi, ou não, prejudicada por ter eu sido um contestatário político, ou por ter sido emigrante   (na Venezuela, no Canadá, no Brasil e, de certo modo,  até em Portugal, no regresso), ou por o meu curso universitário, em termos práticos, ter sido um erro em todos os aspetos, nunca o tendo aproveitado profissionalmente, dele retirei para a vida  a matemática que aprendi e de que tanto gostei. Apesar de tudo isso, considero que fui muito feliz.
   Primeiro, porque os meus pais me proporcionaram uma boa infância e uma família grande e muito unida, e, também, por me terem permitido uma adolescência com muita liberdade e rica em experiências.
  Segundo, porque quando adulto, com esforço e perseverança, e bastante sorte, consegui um rumo profissional muito gratificante, o da edição, no qual tive razoável sucesso. Também porque aproveitei este para viver bem, criar quatro filhos, viajar muito e desfrutar sempre de muita oferta cultural.
  Terceiro, porque a natureza me concedeu o privilégio de uma velhice saudável e lúcida.
   Porém rolei como um seixo no leito de um rio de caudal forte. Mas talvez tenha sido isso que alisou a minha alma e a mente, de tal forma que agora revejo todos esses anos vividos, um a um, mês a mês, semana a semana, hora a hora, e acho que valeu a pena, que posso dizer, sem falsa modéstia, que plantei sonhos dos quais colhi os frutos.
  Conseguirei eu, através destas linhas, escritas sem ordem e sem formalidade, construir um painel variado do que foi essa minha vida, para eu mesmo ver e apreciar. Talvez alguns leitores, que de qualquer forma tenham sido mais chegados a mim, tenham curiosidade de espreitar também para estes textos descontinuados e identifiquem episódios e épocas de que participaram ou que, pelo seu teor, lhes interesse particularmente. Ficaria muito satisfeito.
   Essa probabilidade será possível agora que as redes sociais desfizeram fronteiras geográficas e até pulverizaram as do tempo-memória, transformando o planeta Terra antes compartimentado em países e nacionalidades  agora numa imensa comunidade global.
                                                       * * *


segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

PARTIDA. A GRANDE AVENTURA

19.       PARTIDA. A GRANDE AVENTURA

  Naquele tempo (1949), uma viagem de avião internacional era inusitada,  pelo que foi natural  que toda a família fosse ao aeroporto dizer adeus ao jovem que embarcava já depois da meia noite para Nova York, para um futuro completamente desconhecido.  Hoje, para mim, uma rematada loucura, mas, então, uma fantástica aventura.
  Quando os altifalantes berraram: “Senhor Mário Mendes Moura, favor dirigir-se ao balcão da Polícia de Vigilância e Defesa  Internacional”,  gelei. Contudo, não podia mostrar que ficara preocupado, principalmente perante a minha mãe e o meu pai,  fiz um sorriso de  tranquilidade e lá fui, com o coração apertado.
  No guiché da PVDI, lá estavam dois pides com a indisfarçável cara de pides. Com um falso sorriso de ingénuo perguntei porque me chamavam.
O senhor não vai poder viajar, acho que  conheço a sua cara, e este passaporte não me parece em ordem,  preciso de averiguar a sua ficha lá na sede.
Mas que ficha? Sou estudante, vou fazer uma viagem de negócios na Venezuela, para o meu pai que não consegue viajar. Volto antes de um mês, veja na minha passagem. Tenho visto de trânsito nos Estados Unidos e de turista na Venezuela, estão aí confirmados e carimbados no passaporte. Está tudo em ordem.
Conheço a sua cara, não me engano. Faço plantões lá na sede a vigiar os que fazem ‘estátua’. Lembro-me bem que, quando foi a sua vez,  foi muito engraçadinho ao dizer-me que mais tarde os meus filhos me iriam ver enforcado nos candeeiros da Avenida da Liberdade, e se eu não ficava preocupado com isso. 
   Entrei em pânico, mas felizmente acho que não o demonstrei. Claro, estive em várias sessões do que eles chamavam ‘estátua’, nas quais um pide se sentava e nos vigiava para não nos sentarmos no chão, tínhamos que ficar de pé, andar o mínimo. De duas em duas horas o pide era revezado e o que chegava vinha sempre com ameaças e grosserias para nos desmoralizar. O truque era dizer coisas do género das que o pide agora me acusava.
  Se não embarcasse, adeus à viagem. A António Maria Cardoso informaria que eu estava com residência fixada em Lisboa e que o meu pedido de passaporte não tinha passado por lá. Realmente, tinha conseguido o meu passaporte diretamente no Registo Civil Central, com ordem direta do Capitão Matos, Tesoureiro Geral, nosso vizinho e que me conhecia desde garoto. Por isso não houvera o trâmite da passagem do processo pela PVDI.
   ‘Perdido por cem, perdido por mil’, pensei. Com a maior naturalidade disse ao polícia:
Olhe, senhor, pode telefonar para o Capitão José Catela, ou pedir que a sede o faça, para dizer que o filho do senhor Gil Mendes de Moura está aqui para embarcar com a documentação em ordem e vocês querem impedir.
Acha que vamos telefonar para o Capitão a esta hora?
É melhor do que ele amanhã cair em cima de vocês os dois! Telefonem, por favor.
  A minha insistência e a cobardia deles acabou por convencê-los. Com muitas hesitações, troca de palavras entre os dois, resolveram liberar-me. Eu sabia, por experiência, que eles tinham mais medo do ‘esquema pidesco’ do que nós, os detidos. Claro está que o Capitão Catela nem imaginava a existência do meu pai, um pacato importador/exportador autónomo. Também não sei porque pelo menos não telefonaram para a sede, talvez por ser tarde, ou por insegurança.
   O numeroso grupo familiar, umas vinte pessoas, sem suspeitar sequer  do susto por que eu passara, acolheu-me em clima de festa  e de antecipada saudade, que afinal duraria duas décadas. Entretanto eu contava angustiado os minutos para a partida. Claro,  não foi sem emoção que me despedi de todos, rumo a Caracas, via Nova York, voo TWA, com não muito mais do que cem dólares no bolso.
  Fora o meu amigo António Pedro, de quem eu era padrinho do casamento dele com a minha boa amiga Glicínia Quartin,  que trabalhava na TWA,  a aconselhar-me esse voo,  às quintas-feiras e que deveria fazer conexão na sexta  de Nova York para Caracas, pela AVE. Mas, segundo António Pedro, essa conexão numa acontecia como era prevista no horário e, neste caso, eu entretanto ficaria por conta da companhia até acontecer o tal voo semanal para Caracas, provavelmente dois ou três dias mais tarde.
   Quando me sentei na poltrona do avião senti a alegria de estar em liberdade. Alegria que durou apenas umas três horas, pois logo anunciaram a descida para o aeroporto de Santa Maria, aeroporto açoriano construído pelos americanos durante a guerra para abastecimento dos seus voos intercontinentais, e que passou ao serviço da aviação civil portuguesa em 1946.
  ‘Não muito longe da terrível ilha que albergava a prisão do Tarrafal’, pensava eu aterrorizado. ‘E se os pides depois comunicaram com a sede e esta contactara com o aeroporto para onde estávamos a descer, ordenando a minha detenção?’, interrogava-me. 
   Quando o avião aterrou fingi estar a dormir para não sair, mas sem resultado, a hospedeira informou-me de que todos os passageiros, todos,  tinham  mesmo que sair. Desci do avião e percorri a pé e preocupado o piso do aeroporto até à gare, nessa época nem se sonhava com ‘mangas.  No portão da gare estava um tipo da Polícia de Vigilância pedindo os passaportes aos viajantes. Entreguei o meu, claro, e fiquei vagueando pelo salão na certeza de que, ao voltar para o avião, o pide não me devolveria o passaporte e nem me deixaria embarcar. Um sofrimento.
   Mas felizmente as minhas preocupações eram infundadas. Era apenas uma rotina e Lisboa dormia. Ao voltar à minha poltrona jurei para mim mesmo não mais voltar a Portugal enquanto o regime fosse fascista, com ou sem Salazar.

  Nevava à chegada a Nova York. Era fevereiro. Não tive quaisquer problemas com a Polícia de Imigração Americana, para minha surpresa. Também não foi surpresa o representante da AVE, a companhia de aviação venezuelana que garantia a ida para Caracas, informar-me  que não havia voo previsto para Caracas para aquele dia, nem sequer para sábado. Possivelmente o voo seria no domingo. Confirmariam o voo diretamente para o hotel, para onde me recambiaram com um voucher para pagar a estadia, julgo que se chamava ou White Elephant, ou Big Elephant, em Manhattan. Um hotel do tipo de três estrelas de hoje, não mais de quinze andares, não longe do Empire Building. Nunca consegui localizá-lo das muitas vezes que depois visitei aquela cidade. Inexperiente na época nem reclamei da AVE o pagamento do transporte para a cidade.
  Mal acabei o meu diálogo ao balcão da AVE, uma confusão imensa em razão de muitos outros passageiros na mesma situação do que eu, afastei-me um pouco do balcão e logo um pretão me disse algo que não entendi, estava aparentemente de uniforme, e afastou-se arrastando pelo chão a minha mala (não haviam inventado ainda as malas com rodinhas). Felizmente deixou-me na fila de táxis e cobrou-me três dólares.
  O trajeto para a cidade maravilhava-me, exultei ao atravessar a ponte que tão bem conhecia de filmes, mas não achei graça nenhuma quando o táxi estacionou frente ao hotel e me arrancou uma enormidade de dólares. Considerando os meus recursos, deveria ter usado ónibus até à Grande Central e só depois usar táxi.
   Assim que me instalei no quarto e usei a casa de banho, vesti os agasalhos de que dispunha e a gabardine, e saí para me meter na neve. Era puro entusiasmo, Estados Unidos, neve, Nova York, Manhattan, uma nova vida, julgava que promissora. Quase rebentava pelas costuras. Num atrelado tomei um chocolate quente com donuts, a delícia das delícias, enquanto admirava os flocos de neve a  flutuarem, uma novidade para mim.
  Independente, rumo a um país rico de oportunidades, longe de um regime castrador, estava confiante de que não demoraria a estar ‘muito bem’ e a poder chamar a minha mulher e o meu filho, com pouco mais de um ano.
   No Consulado da Venezuela, em Lisboa, quando pedi o visto e apresentei o certificado do curso de silvicultura, apesar de faltar uma cadeira e o estágio, garantiram-me que o governo me doaria terras e maquinaria e faria empréstimos para eu montar uma exploração agrícola. ‘Como nos filmes americanos’, pensei, e acreditei, pois estava tudo por fazer na agricultura da Venezuela. Pobre de mim, não conhecia ainda a descarada mentira da burocracia sul-americana.
     Por dois dias vagueei pela notável ‘maçã’ e tudo me maravilhava. Tinha direito ao pequeno-almoço no hotel e nele tratava de fazer as minhas ‘reservas’, como um camelo antes de enfrentar o deserto. Não era o deserto que eu ia enfrentar mas sim uma gigantesca, soberba e assustadora cidade. Durante o dia, os muffins, os  hot dogs e os meat balls garantiam-me  a energia a preço módico.
   Para quem sempre vivera em Lisboa, especialmente em Campo de Ourique, com os seus modestos prédios de quatro andares, a diferença era abissal. A cidade impressionou-me muito, com os seus arranha-céus, alguns interessantes, o imenso movimento de pessoas a todas as horas do dia e da noite, a variedade de raças cruzando-se nessas multidões, o néon das lojas e dos gigantescos anúncios publicitários. Contudo, o cinema tem o condão de mistificar as cidades, como também de desvirginá-las. Tantos e tantos filmes haviam criado em mim um forte desejo de conhecer esta cidade, mas vira tantas e tantas vezes aquelas ruas, prédios e anúncios luminosos, que estes não me eram desconhecidos.
   Estranhamento, eu que sou friorento enfrentava bem o frio, que este sim, desconhecia. Percorria as ruas como um andarilho, ou um desesperado vagabundo, lembrava-me de alguns contos de O’Henry e de Tchecov, entrava o mais possível nos espaços fechados e olhava tudo como menino frente à montra de uma loja de doces. Lia com atenção os menus dos restaurantes, o quadro com os preços das entradas nos cinemas (que variavam de sessão para sessão), espiava o custo das entradas nos museus, e os meus não-dólares obrigavam-me a sorrir e continuar  em frente.
   Otimista, prometia a mim mesmo voltar àquela cidade com dinheiro suficiente para não ter todos aqueles acessos impedidos. Não sabia ainda que tão poucos anos depois voltaria muitas vezes, mais de uma dúzia, em condições de usufruir a múltipla e plurifacetada oferta desta babel, que nunca sossega, nunca dorme, sempre tem algo de novo a oferecer.
   Domingo finalmente o carro da companhia, como tinham avisado, apanhou-me no hotel para me levar ao aeroporto. O avião com as cores venezuelanas era bem menor do que o da TWA e não me inspirou muita confiança. Mas o que fazer? Contudo foi um voo tranquilo, talvez de seis ou sete horas.

 Na chegada à Venezuela, quando me despachei da Imigração em Maquetia, contei os meus dólares, treze. Perguntei quanto era um táxi para Caracas e após longa discussão a ‘corrida’ ficou estabelecida em doze dólares. E lá começámos a escalada, do nível do mar até à cota mil, onde os espanhóis encarrapitaram Caracas. Apenas vinte quilómetros, mas curvas em declive assustador, uma estrada estreita, realmente empolgante. Só muito depois foi construída uma autoestrada com arrojados viadutos que tornam hoje esta viagem um passeio.
   O táxi largou-me no centro da cidade, rodeado de arcadas, uma bela solução para um clima tropical e de inspiração francesa, copiando a Rue Royal  de Paris. Fora nesta praça que tinha combinado com o meu amigo Daniel Morais o encontro, antes por carta e depois de Nova York por telegrama, do próprio aeroporto, avisando da hora provável da chegada.
   Enquanto esperava entrei numa ‘Fuente de Soda’, que deduzi tratar-se de uma pastelaria mais moderna, tomei um delicioso sumo de pera e uma sanduíche de queijo, e lá se foi o meu último dólar. Mas senti-me feliz, imensamente feliz. Vim a saber depois que parvamente feliz.
  Foi com alegria que abracei o Daniel, que não demorou a chegar, o meu querido e leal amigo, companheiro presente mas invisível no Aljube, e depois partilhando a mesma cela em Caxias. Éramos ambos da Comissão Central do MUD Juvenil e ambos tínhamos sido presos em 31.1.48 sob o pretexto do MUDJ ter convocado uma manifestação para esse dia, comemorando uma esquecida data de uma revolução portuense. Ficámos dois meses em celas distintas no Aljube e depois de muitos interrogatórios, em que tentaram sempre que um denunciasse o outro, com artifícios e mentiras, fomos transferidos para Caxias. Apenas os dois numa grande cela, felizmente com janela, mas suspeitávamos que estávamos sob escuta, pois não encontrávamos explicação para esta transferência se não fosse esse o objectivo: escutar as nossas conversas. E foi um martírio, pois os nossos diálogos eram censurados por nós mesmos, alguma coisa mais confidencial era escrita e depois queimada.
   Mas naquele momento, sob aquele sol radioso e céu azulíssimo, o que importava é que eu tinha uma vida pela frente em liberdade e, acreditava, cheia de possibilidades.

  Naquele país comi o pão que o Diabo amassou, e não é gostoso, mas foi lá que fiquei adulto. Deixei de ser ingénuo e sonhador, tornei-me mais pragmático e realista, mas não canalha,   para poder enfrentar a difícil vida de emigrante e de homem de negócios.