23. LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA
Depois de ter visitado Portugal pela primeira vez vinte anos
após a minha saída em 1948, voltei muitas vezes durante o período de outros
vinte anos em que continuei a viver no estrangeiro. Nos primeiros anos
especialmente para estar com o meu pai e a minha mãe ainda vivos, que moravam
sozinhos em Campo de Ourique, ou melhor dito rodeados de todos os seus filhos
vivos (Isabel, a minha irmã mais velha, Rui, pouco mais velho do que eu, e
Rogério, um pouco mais novo), mais um genro e duas noras, e nada menos que doze
netos.
Para mim, Campo de
Ourique, para além do convívio com todos esses familiares (a maior parte dos
meus sobrinhos eram-me até então desconhecidos), oferecia-me muito em termos de
recordações da adolescência e da juventude. Contudo, Lisboa oferecia-me pouco
mais, uma cidade sem grandes espetáculos e quase sem museus de porte, apenas o
Museu de Arte Antiga (que eu revisitava muito, como quando era jovem) e o recém-inaugurado
Museu da Gulbenkian, uma verdadeira pedrada no pântano. Dava umas escapadas a
Mafra, à Ericeira, a Sintra e até a Coimbra.
Na minha segunda visita à terrinha, a política nacional
divertia-me muito. Eu voltara a Portugal porque Salazar deixara de ser
Presidente do Conselho de Ministros. Bom, não foi bem assim. Salazar havia
caído de uma cadeira, parece que ao cortar os calos, há pouco mais de um ano
atrás, e ficara incapacitado para governar, segundo os médicos, e não só, e
Marcelo Caetano ocupara o cargo de Salazar. Mas o mais fantástico é que Salazar
foi levado para o Palacete de São Bento, sua residência oficial como Presidente
do Conselho de Ministros (como é sabido o Parlamento ficava praticamente no seu
quintal das traseiras), e lá ficou como se ainda Presidente do Conselho de Ministros
fosse. Os Ministros iam despachar com ele e, ao que se dizia, a D. Maria (essa
controversa personagem) não o deixava ler jornais, ouvir rádio ou ver
televisão. E assim se passaram dois anos, ele caiu da cadeira a 3 de agosto de
1968 (estava de férias) e veio a morrer em 27 de julho de 1970, pouco depois de
eu voltar para o Brasil.
Quase no final do
falso mandato, um jornalista francês entrevistou Salazar e a folhas tantas
diz-lhe: “Atualmente fala-se muito do Prof. Marcelo Caetano.” Salazar respondeu
que Marcelo tinha sido do seu governo, mas como divergiam muito, ele
demitira-o. Tem alguma coisa de Pirandelo, não tem?
O que me surpreendia
é que todas as pessoas com quem eu falava, mesmo as mais inteligentes e
politizadas, acreditavam nesta farsa. Para mim é evidente que Salazar tinha
consciência da sua incapacidade para estar à frente do Governo, armando esta
cena de fingir que continuava como Presidente do Conselho, e devia divertir-se
muito com as reuniões com os ‘seus’ Ministros. Esta manipulação foi o seu maior
golpe como estadista e permitiu-lhe gozar por mais dois anos da mistificação de
ser o todo-poderoso, o que muito lhe agradaria. Se ainda conseguia falar com
ministros e jornalistas, como era possível alhear-se completamente das notícias
do País e do mundo?
Tive curiosidade de
ir até à rua do Palacete de São Bento (uma mansão inserida em 20.000 metros quadrados de área, construída por um homem muito rico, no séc. 19, no terreno de um convento), esquina pela qual passei durante sete
anos, duas ou quatro vezes por dia, quando ia ou vinha do Liceu Passos Manuel
para casa) e fiquei parado a ver o movimento. De facto, chegavam carros grandes
com motorista, fulanos no banco traseiro, certamente ministros, que iam como os
bobos da corte alegrar Sua Majestade.
Um guarda veio até
mim e rispidamente informou-me que eu não podia ficar ali. Tive vontade de lhe
perguntar se temia que eu matasse o morto, mas resolvi afastar-me rapidamente, pois
conhecia a delicadeza da polícia portuguesa. Mas contente, pois assistira a
mais um ato de uma ópera bufa.
Mas, como disse,
enfadava-me em Lisboa. Então, decidi ir até Madrid, que visitara por duas vezes
em viagens à Europa, mas sem vir a Portugal. Lembrava-me da minha primeira
viagem a Espanha, há 30 anos, tinha eu apenas 15 anos, por pura curiosidade,
trajeto a pé e de boas recordações, que relatei no post 17, Maria
Azeitona.
Fui sozinho de
comboio e na volta escrevi uma carta, ou lá o que é, sobre essa viagem, para
uma amiga minha no Rio, que transcrevo abaixo com ligeiras alterações.
Não há queques em Madrid.
Na era do jato
resolvi, por maluquice e saudosismo viajar de comboio de Lisboa a Madrid. São
seiscentos quilómetros unindo, quer dizer, separando, estas duas capitais, mas
na realidade uma viagem que nos leva a um passado presente e mais do que
medieval.
Como companhia, meu
amigo quase irmão, meu irmão quase amigo, eu próprio, cuidadosamente embrulhado
em ideias fantasiosas de uma viagem de quando ainda garoto a uma cidadeca
espanhola, e muitas saudades de uns tempos em que a escola era risonha, pois
era apenas um menino, e só depois de homem mais que feito o menino sabe, tarde,
como era bom aquele tempo. Enquanto a paisagem corria, ficámos conversando,
discutindo o futuro que não sabemos se teremos, grandes planos, não realizáveis
— mas afinal quantos dos nossos sonhos conseguimos realizar? Porém, seria a
vida possível sem eles?
A paisagem é
anacrónica. Ovelhas e oliveiras, oliveiras e ovelhas, como nos tempos bíblicos.
Fico a aguardar guardas pretorianos como os de filmes americanos. Mais
oliveiras, ovelhas, algumas vacas, muros de pedra, casas de pedra, rochas, um
ou outro cão, mais muros de pedra, oliveiras. Infelizmente poucos jumentos, que
saudades do meu burrico Ginga, da quinta de Cabeda, a cadela Estrela e o meu
casal de milhafres. E do seu voo sereno e soberano que eu admirava estirado
naquela terra de cheiro tão gostoso como o de mulher amada (mas isto só vim a
descobrir depois).
Lá fora a colheita de
azeitona está em marcha, ou talvez outra tarefa agrícola. Cestos e lonas, os
putos, muitos, as mulheres de preto, curvadas, cansadas, que não acenam para o
comboio de luxo, possivelmente até lhe rogam pragas. Em vez de burros, um ou
outro Renault ou Fiat.
Sete horas de muros
de pedra a dividir as pequenas propriedades, velhas e retorcidas oliveiras,
riachos prateados e as azedinhas pintando alegremente de amarelo ingénuo e puro
o verde-escuro do pasto. Os grandes novelos de lã, como há milhares de anos,
arrancam pacientemente o seu sustento deste pasto. Para mim, estas ovelhas representam
uma viagem no tempo, não no espaço.
Aqui e acolá,
vergonha, grandes manchas de eucaliptos. Empurram, mais e mais, a vinha, o
trigo, o pinheiro, o pasto, a oliveira. Em breve o português comerá e beberá
celulose… e defecará imensos rolos de papel higiénico com os Lusíadas neles
impresso.
Há uma fronteira,
assim o indica a parada, guardas e carimbos e, claro, perguntas idiotas. Para
quê, se dos dois lados tudo é gente humilde vivendo de colheitas à custa de
muito suor, um mundo simples, a vaca, a oliveira, o leite, a lã, a azeitona, o
azeite, a mulher de preto. Ao mirá-las penso no ato sexual simples, sem
sofisticação, a mente simples, o corpo quase virtuoso mas que gera todos estes
desgraçados que fogem destas terras para Lisboa e para os Brasis da vida.
Na chegada a Madrid,
para minha desilusão, não há banda de música nem passadeira vermelha. Sinto-me
o pó da bosta seca do cavalo de bandido de filme de cowboys. Mas afinal
não é tão ruim assim. Telefono para uma amiga madrilena, que não se chama
Carmen nem Dolores, pouco interessa, eu chamo-a de ‘minha flor’.
É Páscoa. Vejo o desfile na Gran Via, muita pompa e fervor, muito roxo e dourado, mas, coitados, não conseguiriam desfilar no Segundo Grupo das Escolas de Samba do Rio. Falta requebro e pele escura e, claro, maconha e cachaça. Confronto com um desfile de Páscoa em Cuba, há muitos anos, e concluo que Disney liquidou as velhas tradições. Oh! Hollywood, como mudaste os homens em meio século, mais do que a Igreja Católica em vinte.
É Páscoa. Vejo o desfile na Gran Via, muita pompa e fervor, muito roxo e dourado, mas, coitados, não conseguiriam desfilar no Segundo Grupo das Escolas de Samba do Rio. Falta requebro e pele escura e, claro, maconha e cachaça. Confronto com um desfile de Páscoa em Cuba, há muitos anos, e concluo que Disney liquidou as velhas tradições. Oh! Hollywood, como mudaste os homens em meio século, mais do que a Igreja Católica em vinte.
Madrid, linda, limpa,
imponente, ainda com resquícios do franquismo. Mas sem dúvida espetacular…
porém não há queques em Madrid. Apenas churros e roscones. Se Portugal não
estivesse a vender ainda e apenas os extraordinários feitos dos navegadores de
há quatro séculos, poderia estar vendendo queques, pastéis de nata e papos de
anjo para seus vizinhos, e não só.
Madrid sem touradas,
com sol e frio de março. O ritual do cinema às dez da noite e a ceia à
meia-noite e depois tablado ou zarzuela. Felizmente também la siesta,
que ninguém é de ferro.
Visito demoradamente
El Retiro. Está cheio e lindo. Fantasmagórico com centenas de árvores
despidas de folhas, ramos implorando algo ao céu, e como elas me impressionam.
Dá vontade de aguardar o renascer das suas folhas na primavera já próxima. E
porque não? Acarinho algumas das suas árvores majestosas, aproveito o fresco
das imensas copas das que mantiveram a folhagem, ensopo-me de verde abundante e
do salpicado das cores de muitos canteiros em flor. Nem que seja só para
visitar este maravilhoso parque, vale a pena visitar Madrid.
No Prado vejo a
jogar a equipa completa: Ticiano,
Velásquez, Goya, Zurbarán, El Greco,
Becerra e outros. Não descubro qual é o artilheiro, mas aposto em Goya.
Porém, fico pensando como os bispos e beatas aceitavam aqueles nus voluptuosos,
pecaminosos, mágicos? Autoflagelação ou alimento de sonhos proibidos?
Depois Guernica.
Pausa. É um murro no estômago bem dado por Picasso. O resto é água com açúcar.
Penso em Lorca fuzilado em lugar incerto, no bombardeamento pelos aviões
alemães, nas colunas de mercenários roubando e incendiando tudo quanto
assaltavam, das crianças roubadas aos pais ou sem eles, assassinados. Além de
uma obra de arte poderosa é um testemunho, um alerta, que fica, ficará por
muitas gerações para lembrar aquele período negro, tão negro da história da
Espanha e da humanidade. Obrigado, Picasso.
Na época ainda não
existiam os museus da Rainha Sofia e o Thyssem-Bornemisza. Por isso visito
também o Museu de Arqueologia. Aquela vida há tantas dezenas de séculos
impressiona-me tanto quanto os livros de Arthur Clarke, que me esperam lá fora,
no quiosque de jornais. Para mim é uma medida muito grande, inaceitável, tantos
milhões de anos para quem tem apenas escassos milhões de segundos.
Mas é preciso voltar
à terra, que não tem funcionado como tal para mim, regressar a um outro mundo,
terceiro (?), não sei.
De novo o comboio. A
paisagem secular. Em terras espanholas há muitos touros a pastar. Manadas
pretas movimentam-se lentamente como que para uma refrega. Que esperam aqueles
touros, para que praça de touros irão ser lidados e mortos para glória e
vaidade de que toureiro?
A minha carruagem
está quase vazia. Antes da fronteira, um sujeito, possivelmente africano ou
boliviano, bem vestido, como os pretos em filme americano nos seriados,
inclusive com grandes óculos escuros, vem até à primeira classe, estaca um
pouco na entrada, inquieto, eu estou olhando os campos pela janela, ele
decide-se e entra apressado na casa de banho. Filho da mãe, não me engana.
Quando ele saiu fui conferir, não deu outra. No toalheiro, em baixo, lá está a
coca em saquinhos, sedutora, ameaçadora, vale um dinheirão. De repente pensei
em surripiá-la, mas tive medo e nem tinha sentido. Jogá-la fora pela janela? Um
espírito burguês idiota não me deixou destruir o que valia tanto. Depois me
achei uma besta.
Assim que entrámos
neste Portugal patusco, querido (?), nem sei, o dealer volta à casa de
banho para apanhar a muamba. Levou um susto quando viu tudo remexido, sacos
rasgados, o ‘pó’ descoberto. Agora ele ‘sabe’ que alguém ‘sabe’, mas não
entende a jogada, pensará que foi algum curioso, não os guardas. Sai da casa de
banho e fica especado no corredor a olhar para os viajantes nas suas poltronas.
Tenho a certeza que ele ‘sabe’ que fui eu, o mais possível dos seis
passageiros. Fico firme. Ele olha e não entende. Dá um tempo esperando que eu
abra o jogo. Levanto-me, passo por ele e vou até ao bar. Tomo meia garrafa de
vinho branco, o meu ‘pó’, líquido e saboroso.
Entretanto, fico a
pensar como os brancos estão sendo destruídos pelas drogas vendidas por outros
brancos sem escrúpulos, pretos, mestiços, crioulos, árabes, asiáticos. Réquiem
para uma raça! Os chineses vendem o seu ópio de segunda aos americanos ou aos
lordes ingleses, que compram a coca ao mestiço boliviano, e a heroína aos
argelinos. Bom negócio, sem necessidade de milionárias campanhas de
publicidade. Repito, réquiem para a raça branca, música de Mozart, em CD de
gravação japonesa e aparelho coreano.
Finalmente o comboio
está a chegar a Santa Apolónia. É o regresso a Lisboa ainda simplória, minha
doce e esquecida namorada. Quando a locomotiva freia com aquele cinematográfico
resfolgar, tenho a sensação que acabou uma sessão de cinema.
Meus irmãos
esperam-me na estação. Afinal sou gente. Eu que fiz centenas de viagens aéreas,
de comboio e de autocarro, por tantos países, nunca alguém me acenou um lenço
de adeus nas partidas, nunca alguém me abraçou nas chegadas.
Lisboa, 1970
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