DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA

23.  LISBOA, MINHA DOCE E ESQUECIDA NAMORADA

Depois de ter visitado Portugal pela primeira vez vinte anos após a minha saída em 1948, voltei muitas vezes durante o período de outros vinte anos em que continuei a viver no estrangeiro. Nos primeiros anos especialmente para estar com o meu pai e a minha mãe ainda vivos, que moravam sozinhos em Campo de Ourique, ou melhor dito rodeados de todos os seus filhos vivos (Isabel, a minha irmã mais velha, Rui, pouco mais velho do que eu, e Rogério, um pouco mais novo), mais um genro e duas noras, e nada menos que doze netos.
  Para mim, Campo de Ourique, para além do convívio com todos esses familiares (a maior parte dos meus sobrinhos eram-me até então desconhecidos), oferecia-me muito em termos de recordações da adolescência e da juventude. Contudo, Lisboa oferecia-me pouco mais, uma cidade sem grandes espetáculos e quase sem museus de porte, apenas o Museu de Arte Antiga (que eu revisitava muito, como quando era jovem) e o recém-inaugurado Museu da Gulbenkian, uma verdadeira pedrada no pântano. Dava umas escapadas a Mafra, à Ericeira, a Sintra e até a Coimbra.
Na minha segunda visita à terrinha, a política nacional divertia-me muito. Eu voltara a Portugal porque Salazar deixara de ser Presidente do Conselho de Ministros. Bom, não foi bem assim. Salazar havia caído de uma cadeira, parece que ao cortar os calos, há pouco mais de um ano atrás, e ficara incapacitado para governar, segundo os médicos, e não só, e Marcelo Caetano ocupara o cargo de Salazar. Mas o mais fantástico é que Salazar foi levado para o Palacete de São Bento, sua residência oficial como Presidente do Conselho de Ministros (como é sabido o Parlamento ficava praticamente no seu quintal das traseiras), e lá ficou como se ainda Presidente do Conselho de Ministros fosse. Os Ministros iam despachar com ele e, ao que se dizia, a D. Maria (essa controversa personagem) não o deixava ler jornais, ouvir rádio ou ver televisão. E assim se passaram dois anos, ele caiu da cadeira a 3 de agosto de 1968 (estava de férias) e veio a morrer em 27 de julho de 1970, pouco depois de eu voltar para o Brasil.
  Quase no final do falso mandato, um jornalista francês entrevistou Salazar e a folhas tantas diz-lhe: “Atualmente fala-se muito do Prof. Marcelo Caetano.” Salazar respondeu que Marcelo tinha sido do seu governo, mas como divergiam muito, ele demitira-o. Tem alguma coisa de Pirandelo, não tem?
  O que me surpreendia é que todas as pessoas com quem eu falava, mesmo as mais inteligentes e politizadas, acreditavam nesta farsa. Para mim é evidente que Salazar tinha consciência da sua incapacidade para estar à frente do Governo, armando esta cena de fingir que continuava como Presidente do Conselho, e devia divertir-se muito com as reuniões com os ‘seus’ Ministros. Esta manipulação foi o seu maior golpe como estadista e permitiu-lhe gozar por mais dois anos da mistificação de ser o todo-poderoso, o que muito lhe agradaria. Se ainda conseguia falar com ministros e jornalistas, como era possível alhear-se completamente das notícias do País e do mundo?
  Tive curiosidade de ir até à rua do Palacete de São Bento (uma mansão inserida em 20.000 metros quadrados de área, construída por um homem muito rico, no séc. 19, no terreno de um convento), esquina pela qual passei durante sete anos, duas ou quatro vezes por dia, quando ia ou vinha do Liceu Passos Manuel para casa) e fiquei parado a ver o movimento. De facto, chegavam carros grandes com motorista, fulanos no banco traseiro, certamente ministros, que iam como os bobos da corte alegrar Sua Majestade.
   Um guarda veio até mim e rispidamente informou-me que eu não podia ficar ali. Tive vontade de lhe perguntar se temia que eu matasse o morto, mas resolvi afastar-me rapidamente, pois conhecia a delicadeza da polícia portuguesa. Mas contente, pois assistira a mais um ato de uma ópera bufa.
  Mas, como disse, enfadava-me em Lisboa. Então, decidi ir até Madrid, que visitara por duas vezes em viagens à Europa, mas sem vir a Portugal. Lembrava-me da minha primeira viagem a Espanha, há 30 anos, tinha eu apenas 15 anos, por pura curiosidade, trajeto a pé e de boas recordações, que relatei no post 17, Maria Azeitona.
  Fui sozinho de comboio e na volta escrevi uma carta, ou lá o que é, sobre essa viagem, para uma amiga minha no Rio, que transcrevo abaixo com ligeiras alterações.

Não há queques em Madrid.

  Na era do jato resolvi, por maluquice e saudosismo viajar de comboio de Lisboa a Madrid. São seiscentos quilómetros unindo, quer dizer, separando, estas duas capitais, mas na realidade uma viagem que nos leva a um passado presente e mais do que medieval.
  Como companhia, meu amigo quase irmão, meu irmão quase amigo, eu próprio, cuidadosamente embrulhado em ideias fantasiosas de uma viagem de quando ainda garoto a uma cidadeca espanhola, e muitas saudades de uns tempos em que a escola era risonha, pois era apenas um menino, e só depois de homem mais que feito o menino sabe, tarde, como era bom aquele tempo. Enquanto a paisagem corria, ficámos conversando, discutindo o futuro que não sabemos se teremos, grandes planos, não realizáveis — mas afinal quantos dos nossos sonhos conseguimos realizar? Porém, seria a vida possível sem eles?
  A paisagem é anacrónica. Ovelhas e oliveiras, oliveiras e ovelhas, como nos tempos bíblicos. Fico a aguardar guardas pretorianos como os de filmes americanos. Mais oliveiras, ovelhas, algumas vacas, muros de pedra, casas de pedra, rochas, um ou outro cão, mais muros de pedra, oliveiras. Infelizmente poucos jumentos, que saudades do meu burrico Ginga, da quinta de Cabeda, a cadela Estrela e o meu casal de milhafres. E do seu voo sereno e soberano que eu admirava estirado naquela terra de cheiro tão gostoso como o de mulher amada (mas isto só vim a descobrir depois).
  Lá fora a colheita de azeitona está em marcha, ou talvez outra tarefa agrícola. Cestos e lonas, os putos, muitos, as mulheres de preto, curvadas, cansadas, que não acenam para o comboio de luxo, possivelmente até lhe rogam pragas. Em vez de burros, um ou outro Renault ou Fiat.
   Sete horas de muros de pedra a dividir as pequenas propriedades, velhas e retorcidas oliveiras, riachos prateados e as azedinhas pintando alegremente de amarelo ingénuo e puro o verde-escuro do pasto. Os grandes novelos de lã, como há milhares de anos, arrancam pacientemente o seu sustento deste pasto. Para mim, estas ovelhas representam uma viagem no tempo, não no espaço.
  Aqui e acolá, vergonha, grandes manchas de eucaliptos. Empurram, mais e mais, a vinha, o trigo, o pinheiro, o pasto, a oliveira. Em breve o português comerá e beberá celulose… e defecará imensos rolos de papel higiénico com os Lusíadas neles impresso.
  Há uma fronteira, assim o indica a parada, guardas e carimbos e, claro, perguntas idiotas. Para quê, se dos dois lados tudo é gente humilde vivendo de colheitas à custa de muito suor, um mundo simples, a vaca, a oliveira, o leite, a lã, a azeitona, o azeite, a mulher de preto. Ao mirá-las penso no ato sexual simples, sem sofisticação, a mente simples, o corpo quase virtuoso mas que gera todos estes desgraçados que fogem destas terras para Lisboa e para os Brasis da vida.
  Na chegada a Madrid, para minha desilusão, não há banda de música nem passadeira vermelha. Sinto-me o pó da bosta seca do cavalo de bandido de filme de cowboys. Mas afinal não é tão ruim assim. Telefono para uma amiga madrilena, que não se chama Carmen nem Dolores, pouco interessa, eu chamo-a de ‘minha flor’.
    É Páscoa. Vejo o desfile na Gran Via, muita pompa e fervor, muito roxo e dourado, mas, coitados, não conseguiriam desfilar no Segundo Grupo das Escolas de Samba do Rio. Falta requebro e pele escura e, claro, maconha e cachaça. Confronto com um desfile de Páscoa em Cuba, há muitos anos, e concluo que Disney liquidou as velhas tradições. Oh! Hollywood, como mudaste os homens em meio século, mais do que a Igreja Católica em vinte.
  Madrid, linda, limpa, imponente, ainda com resquícios do franquismo. Mas sem dúvida espetacular… porém não há queques em Madrid. Apenas churros e roscones. Se Portugal não estivesse a vender ainda e apenas os extraordinários feitos dos navegadores de há quatro séculos, poderia estar vendendo queques, pastéis de nata e papos de anjo para seus vizinhos, e não só.
  Madrid sem touradas, com sol e frio de março. O ritual do cinema às dez da noite e a ceia à meia-noite e depois tablado ou zarzuela. Felizmente também la siesta, que ninguém é de ferro.
   Visito demoradamente El Retiro. Está cheio e lindo. Fantasmagórico com centenas de árvores despidas de folhas, ramos implorando algo ao céu, e como elas me impressionam. Dá vontade de aguardar o renascer das suas folhas na primavera já próxima. E porque não? Acarinho algumas das suas árvores majestosas, aproveito o fresco das imensas copas das que mantiveram a folhagem, ensopo-me de verde abundante e do salpicado das cores de muitos canteiros em flor. Nem que seja só para visitar este maravilhoso parque, vale a pena visitar Madrid.
   No Prado vejo a jogar a  equipa completa: Ticiano, Velásquez, Goya, Zurbarán,  El  Greco,  Becerra e outros. Não descubro qual é o artilheiro, mas aposto em Goya. Porém, fico pensando como os bispos e beatas aceitavam aqueles nus voluptuosos, pecaminosos, mágicos? Autoflagelação ou alimento de sonhos proibidos?
  Depois Guernica. Pausa. É um murro no estômago bem dado por Picasso. O resto é água com açúcar. Penso em Lorca fuzilado em lugar incerto, no bombardeamento pelos aviões alemães, nas colunas de mercenários roubando e incendiando tudo quanto assaltavam, das crianças roubadas aos pais ou sem eles, assassinados. Além de uma obra de arte poderosa é um testemunho, um alerta, que fica, ficará por muitas gerações para lembrar aquele período negro, tão negro da história da Espanha e da humanidade. Obrigado, Picasso.
  Na época ainda não existiam os museus da Rainha Sofia e o Thyssem-Bornemisza. Por isso visito também o Museu de Arqueologia. Aquela vida há tantas dezenas de séculos impressiona-me tanto quanto os livros de Arthur Clarke, que me esperam lá fora, no quiosque de jornais. Para mim é uma medida muito grande, inaceitável, tantos milhões de anos para quem tem apenas escassos milhões de segundos.
  Mas é preciso voltar à terra, que não tem funcionado como tal para mim, regressar a um outro mundo, terceiro (?), não sei.
  De novo o comboio. A paisagem secular. Em terras espanholas há muitos touros a pastar. Manadas pretas movimentam-se lentamente como que para uma refrega. Que esperam aqueles touros, para que praça de touros irão ser lidados e mortos para glória e vaidade de que toureiro?
  A minha carruagem está quase vazia. Antes da fronteira, um sujeito, possivelmente africano ou boliviano, bem vestido, como os pretos em filme americano nos seriados, inclusive com grandes óculos escuros, vem até à primeira classe, estaca um pouco na entrada, inquieto, eu estou olhando os campos pela janela, ele decide-se e entra apressado na casa de banho. Filho da mãe, não me engana. Quando ele saiu fui conferir, não deu outra. No toalheiro, em baixo, lá está a coca em saquinhos, sedutora, ameaçadora, vale um dinheirão. De repente pensei em surripiá-la, mas tive medo e nem tinha sentido. Jogá-la fora pela janela? Um espírito burguês idiota não me deixou destruir o que valia tanto. Depois me achei uma besta.
  Assim que entrámos neste Portugal patusco, querido (?), nem sei, o dealer volta à casa de banho para apanhar a muamba. Levou um susto quando viu tudo remexido, sacos rasgados, o ‘pó’ descoberto. Agora ele ‘sabe’ que alguém ‘sabe’, mas não entende a jogada, pensará que foi algum curioso, não os guardas. Sai da casa de banho e fica especado no corredor a olhar para os viajantes nas suas poltronas. Tenho a certeza que ele ‘sabe’ que fui eu, o mais possível dos seis passageiros. Fico firme. Ele olha e não entende. Dá um tempo esperando que eu abra o jogo. Levanto-me, passo por ele e vou até ao bar. Tomo meia garrafa de vinho branco, o meu ‘pó’, líquido e saboroso.
  Entretanto, fico a pensar como os brancos estão sendo destruídos pelas drogas vendidas por outros brancos sem escrúpulos, pretos, mestiços, crioulos, árabes, asiáticos. Réquiem para uma raça! Os chineses vendem o seu ópio de segunda aos americanos ou aos lordes ingleses, que compram a coca ao mestiço boliviano, e a heroína aos argelinos. Bom negócio, sem necessidade de milionárias campanhas de publicidade. Repito, réquiem para a raça branca, música de Mozart, em CD de gravação japonesa e aparelho coreano.
  Finalmente o comboio está a chegar a Santa Apolónia. É o regresso a Lisboa ainda simplória, minha doce e esquecida namorada. Quando a locomotiva freia com aquele cinematográfico resfolgar, tenho a sensação que acabou uma sessão de cinema.
  Meus irmãos esperam-me na estação. Afinal sou gente. Eu que fiz centenas de viagens aéreas, de comboio e de autocarro, por tantos países, nunca alguém me acenou um lenço de adeus nas partidas, nunca alguém me abraçou nas chegadas.
Lisboa, 1970


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