DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

22. DA BELEZA E DA VERACIDADE

 22.  DA BELEZA E DA VERACIDADE
  Um internauta tropeçou no meu blogue e depois fez reparos ao meu post do final do ano, em que publiquei um muito conhecido e belo texto, ‘Desiderata’, bem adequado à quadra natalícia. O leitor chamava-me a atenção para o facto de esse texto não ter sido gravado na pedra na velha Igreja de São Paulo, em Baltimore, em 1692 (como eu mencionei). Afirma que ‘Desiderata’ foi escrita em 1927 por Max Ehrman, um poeta, mas por ter sido divulgada por um padre levou a esse erro frequentemente cometido.
  Sinceramente, eu já sabia dessa versão, contudo não a mencionei: primeiro, por não acreditar muito nela, várias pessoas afirmam terem fotografado este texto gravado na pedra; segundo, porque é mais interessante que seja um texto com alguns séculos e gravado na pedra no interior de uma velha igreja do que um artigo publicado num jornaleco de província; terceiro, porque o que me importa é a beleza e a força da sua mensagem. Se foi X ou Y que o escreveram, no séc. 17 ou 20, pouco me importa.
  Imaginem que encontro uma bela poesia de Fernando Pessoa gravada na pedra no interior de uma velhíssima igreja alentejana, sem assinatura e datada de 1825. Entusiasmado divulgo-a acrescentando que é anónima e que tem quase cem anos. Deixa de ser menos bela se alguém a identificar como sendo do nosso maior poeta e de ter sido encontrada no célebre baú?
   Há um outro caso similar, que também vem levantando controvérsias. É um outro texto lindíssimo e que deveria ser divulgado nas escolas pela sua beleza, força e atualidade, um verdadeiro manifesto ecológico. Estou a falar da ‘Carta do Chefe índio (na realidade cacique), Seattle, ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce’, em 1854, quando este lhe propôs comprar uma grande área onde habitava a sua tribo e confiná-los a uma reserva.
 De novo a mesma questão. A carta não teria sido escrita diretamente pelo chefe índio Duwamish, de nome Seattle (as terras em questão são quase na fronteira do Canadá), ao presidente americano, mas sim por um tal Dr. Henry Smith que assistiu à reunião desse respeitado cacique com a sua tribo para discutir a oferta do presidente americano. Esse Dr. Smith ficou tão impressionado com a eloquência tão brilhante, lúcida e emocionante do cacique e com o profundo respeito que inspirava ao seu povo, para além da coragem das suas palavras, que anotou uns apontamentos, na base dos quais publicou essa ‘falsa carta’ num jornal (Seattle Sunday Star), em 1887, que daí em diante passou a ser conhecida como ‘A Carta do chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos’ até aos nossos dias.
   Mas o que importa? O que vale é a beleza e a importância do texto. As palavras, sim, só podem ter sido pronunciadas por um índio genuíno, velho e sábio. A ironia, a lucidez, o amor à terra e aos animais, a coragem, explodem nestas linhas e tornam-nas perenes.
  Adiante poderão ler uma versão divulgada na década de setenta do discurso do cacique Seattle após o encarregado dos negócios indígenas do governo norte-americano ter feito a proposta de adquirir as terras da tribo Duwamish. Texto este traduzido pela equipe de ‘Floresta Brasil’, e mantido inalterável, no estilo e na ortografia, e do qual se originou 'A Carta do Chefe Seattle' numa versão mais epistolar e a que foi e é a mais divulgada.

O pronunciamento do cacique Seattle
O grande chefe de Washington mandou dizer que desejava comprar a nossa terra, o grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa de nossa amizade.
Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O grande chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano.
Minhas palavras são como as estrelas que nunca empalidecem.
Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho.
O homem branco esquece a sua terra natal, quando - depois de morto - vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos da campina, o calor que emana do corpo de um mustang, e o homem - todos pertencem à mesma família.
Portanto, quando o grande chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O grande chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, porque esta terra é para nós sagrada.
Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar d'água é a voz do pai de meu pai. Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora, deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe - a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou missanga cintilante. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto.
Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos olhos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende.
Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das asas de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende; o barulho parece apenas insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou, de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento a sobrevoar a superfície de uma lagoa e o cheiro do próprio vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo a pinheiro.
O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem.
O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe o seu último suspiro. E se te vendermos nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado com a fragrância das flores campestres.
Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós - os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si.
Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de seus pés são as cinzas de nossos antepassados; para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra - fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios.
De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.
Os nossos filhos viram seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, menos uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques sobrará, para chorar sobre os túmulos de um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
Nem o homem branco, cujo Deus com ele passeia e conversa como amigo para amigo, pode ser isento do destino comum. Poderíamos ser irmãos, apesar de tudo. Vamos ver, de uma coisa sabemos que o homem branco venha, talvez, um dia descobrir: nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues, agora, que o podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra; mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira e é igual sua piedade para com o homem vermelho e o homem branco. Esta terra é querida por ele, e causar dano à terra é cumular de desprezo o seu criador. Os brancos também vão acabar; talvez mais cedo do que todas as outras raças. Continuas poluindo a tua cama e hás de morrer uma noite, sufocado em teus próprios dejetos.
Porém, ao perecerem, vocês brilharão com fulgor, abrasados, pela força de Deus que os trouxe a este país e, por algum desígnio especial, lhes deu o domínio sobre esta terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é para nós um mistério, pois não podemos imaginar como será, quando todos os bisões forem massacrados, os cavalos bravios domados, as brenhas das florestas carregadas de odor de muita gente e a vista das velhas colinas empanada por fios que falam. Onde ficará o emaranhado da mata? Terá acabado. Onde estará a águia? Irá acabar. Restará dar adeus à andorinha e à caça; será o fim da vida e o começo da luta para sobreviver.
Compreenderíamos, talvez, se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às suas mentes para que possam formar desejos para o dia de amanhã. Somos, porém, selvagens. Os sonhos do homem branco são para nós ocultos, e por serem ocultos, temos de escolher nosso próprio caminho. Se consentirmos, será para garantir as reservas que nos prometestes. Lá, talvez, possamos viver os nossos últimos dias conforme desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará vivendo nestas floresta e praias, porque nós a amamos como ama um recém-nascido o bater do coração de sua mãe.
Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueças de como era esta terra quando dela tomaste posse: E com toda a tua força o teu poder e todo o teu coração - conserva-a para teus filhos e ama-a como Deus nos ama a todos. De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus, esta terra é por ele amada. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.
                                                        ***

 Ao ler este pronunciamento do velho índio dá-me vontade de ser cineasta e fazer uma curta-metragem com base nela. O filme enfatizaria várias vezes a imagem do cacique Seattle a falar à sua numerosa tribo, uma multidão de rostos, focando de quando em quando os mais expressivos, exibiria a floresta ao fundo com as suas imponentes e seculares árvores, depois adentrava nela e explorava as frondosas copas com os seus pássaros, esquilos e outros pequenos animais, não deixaria de valorizar as altas montanhas ainda com neve, assim como rios de água cristalina precipitando-se em pequenas cascatas,  ainda uma imensa planície que servia de pasto para gazelas e veados, e no céu a majestosa águia e muitas outras aves, até borboletas a bailar caprichosamente.
   Imagino as imagens a acompanharem passo a passo as palavras corajosas do velho índio revelando as cenas que ele denuncia.
  Seria, creio, um belo e educativo documentário para passar nas escolas. Claro, uma utopia.
                                                   ***


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