DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

domingo, 14 de dezembro de 2014

AS ZEBRAS DE LISBOA

              13.  AS ZEBRAS DE LISBOA
  O Rio é chamada de ‘cidade maravilhosa’, era-o realmente, talvez ainda hoje o seja, mas não tanto como quando Ary Barroso, na década dos sessenta do século passado, criou o seu hino, uma linda alegoria à alegria carioca.
  Acho que os turistas que vão pela primeira vez ao Rio deveriam preparar-se cuidadosamente para essa aventura, como os que vão para certas regiões e têm que se sujeitar a vacinas. Quando digo ‘preparado’ entenda-se apenas para se arriscar menos e poupar aborrecimentos. Uma orientação, mínima que seja, sobre táxis, metro, águas, contas de restaurantes, horários adequados ou, ao contrário, não, não mesmo, para aqui ou para ali, pontos dos carteiristas, uso de joias, trombadinhas, etc. e tal. O que serve também para qualquer outra cidade a visitar.
 A ‘viagem’ é atualmente um artigo de consumo obrigatório, diria quase que mais socialmente (família, amigos, vizinhos) do que de interesse individual. Os que fazem viagens curtas, conforme as ofertas das agências de viagens, em geral apenas levam consigo algum pequeno guia ou brochura com informação reduzida de restaurantes, hotéis e lojas para compras especiais, e breves notas sobre os lugares interessantes a visitar. Bastará, pois afinal o principal objetivo é o de fotografar, fotografar tudo, fotografar todos. De máquina fotográfica em punho, ou iPhone ou iPad, fotografam desde a escada do avião ao quarto do hotel, sim, também monumentos em passagem rápida, do alto de um autocarro city seeing, e o grupinho frente a qualquer outro local  tido como obrigatório.  Mais do que ver, sentir, cheirar e admirar… fotografar, para depois exibir essas fotos aos vizinhos e, talvez, quando mais velhos, para que lhes devolvam esfumaçadas recordações da Torre Eiffel ou do Coliseo de Roma.
   Mas há os que planeiam cuidadosamente as suas viagens para conhecer minimamente um país ou uma região, as suas belezas naturais e as construídas pelo homem, e o seu povo e a sua cultura. Para estes as viagens serão cuidadosamente antecipadas com leitura de bons guias de viagens e livros de arte, quando possível, de romances ou filmes em que a ação se ambienta nessa cidade. Mesmo assim, e mesmo que a visita seja mais longa, não será fácil captar totalmente o espírito da cidade. Bairros modernos e elegantes, onde de dia circulam milhares de pessoas e carros, às compras ou a caminho dos seus escritórios e lojas, ou de um cinema ou restaurante, às dez da noite podem estar assustadoramente desertos. Em compensação, velhos bairros degradados, com pouco movimento e quase só de pessoas de idade, às onze da manhã, doze horas depois surpreenderá pelas centenas de negócios iluminados pelos néones publicitários e incrível movimentação dessas lojas onde se vendem livros, discos, sandes, recordações, artigos esotéricos e de medicina alternativa, talvez drogas mais ou menos camufladas. Haverá, também, restaurantes (não faltarão os japoneses, chineses e tailandeses), bares, sex shops, barbearias… Possivelmente, em algumas ruas, infelizes de vários sexos e idades oferecem os seus serviços em roupas provocadoras, assim como nalguma esquina um velho tocará melancolicamente o seu acordéon ou um jovem andrógino sopra flauta lisa.
  Obviamente que as perspetivas do viajante serão diferentes se vai para Berlim ou Bruxelas, Amesterdão ou Oslo, Veneza ou Marselha, Paris ou Porto, Viena ou Genebra, Praga ou Barcelona, Roma ou Milão, São Petersburgo ou Madrid, falando só na Europa.
  No Brasil o leque não será menos aberto. Mas fixemo-nos apenas no Rio. Para mim, o Rio, enquanto cidade maravilhosa, mais do que uma cidade é, essencialmente, um estado de espírito, e por isso mais difícil de captar. É a praia (mas determinada praia, em determinada hora, em determinado sítio), é a cerveja estupendamente gelada e gostosa (em determinado boteco de uma esquina de Leblon, onde sei que reúnem os botafoguenses), é o ensaio de uma escola de samba (mas que seja o da Beija-Flor), é um jogo no Maracaná (de preferência um Fla-Flu), é uma caipirinha com um amigo em Santa Teresa (ao final da tarde), é o velejar na baía de Guanabara (sozinho e quando o vento sopra noroeste), é ouvir uma boa sambista (num bar da Lapa), é passear descontraidamente a ver as montras (claro, em Ipanema), é passear de mãos dadas com a namorada (nas áleas do Jardim Botânico). É tudo isso, mas aceitar também o furto do telemóvel da mesa do café ou um pequeno assalto na rua por ‘pivetes’, assim como a sujeira e a pobreza, num país tão rico.

Quando eu vivia no Brasil, um amigo viajou para Portugal e quando voltou eu perguntei-lhe: “Então, gostaste de Lisboa?” Ele olhou-me com ar feliz e soltou um “muito” entusiasmado. Voltei ao interrogatório: “E de que é que gostaste mais?” Ele não hesitou: “Das zebras, das passadeiras. É bestial. Colocamos o pé na primeira lista e os carros param imediatamente. É fantástico!”
  De certo modo, o meu amigo tinha razão, no Rio só os incautos atravessam as faixas de segurança sem olhar com atenção para os dois lados. Os prevenidos, por precaução, às vezes ficam quietos até algum carro mais apressado passar sem ligar a mínima ao transeunte especado. Ainda me lembro de uma ocasião em que eu e um outro amigo íamos atravessar uma rua pela passadeira, em Botafogo, ele segurar-me o braço e exclamar: “Não vás, ele já nos viu!” e olhava atento para um carro que ainda longe vinha disparado.
  Sei de vários portugueses que visitaram o Brasil e que ficaram admirados por verem, em especial à noite, os carros a não pararem nos sinais vermelhos. A explicação é simples, o motorista confronta a possibilidade de levar uma multa por desrespeitar os semáforos, contra outra de levar um tiro e lhe roubarem o carro.
  Quando eu voltei a Lisboa, nos finais do século passado, estranhei muito a calma e a descontração com que tantos pedestres avançam nas faixas, sem olhar para os lados e sem hesitações. Nem com o passar do tempo consegui habituar-me a ver isso, pois continuo a achar uma temeridade não tomarem a precaução mínima de olhar para os carros, pois com ou sem listas o motorista pode (mesmo que não deva) estar distraído, talvez falando no telemóvel, ou, mesmo tentando, não conseguir travar, por inoperância sua ou do próprio travão.
   Hoje acho que esse atravessar lento e aparentemente descuidado é, realmente, uma ostensiva demonstração do seu absoluto direito ‘de peão’. Até talvez estejam certos, já que os últimos governantes se empenharam tanto em abolir muitos dos seus direitos consolidados, até mesmo os constitucionais. Porque há de um reformado, a quem ‘roubaram’ parte da sua pensão, conquistada com tanto suor e esforço, correr dos carros quando aquelas listas de zebra lhe garantem o direito de preferência sobre os veículos. Têm sorte por essa ‘travessia’ não representar cifrões, pelo que a Troika não se ocupou do assunto.
   Por acaso[29211] , lembrei-me agora de um jovem romeno que, fora do expediente, como biscate, fazia a limpeza da loja onde funcionava a nossa agência de viagens em Londres. Uma vez, ele confessou-me que ficava na beira do passeio, frente a alguma passadeira, meio escondido, e quando conseguia a oportunidade jogava-se à frente de algum carro, de preferência topo de gama, quando o sinal mudava de verde para vermelho e o carro avançava um pouco na passadeira. Por vezes, algum chegava a tocá-lo ou quase, logo ele agilmente deitava-se no chão e ficava a berrar agarrado às pernas. Rapidamente conseguia um acordo de umas boas libras, pois os motoristas, mesmo sem se sentirem culpados, temiam a possibilidade de um processo. Quando lhe perguntei se não tinha medo de ser realmente atropelado e ficar com as pernas quebradas, ele riu e respondeu: “É isso mesmo que eu quero. Receberia uma alta indemnização e voltava para a minha cidadezinha na Roménia, talvez até com uma pensão vitalícia.”
  As recordações são como as cerejas, puxamos uma e logo vem uma enfiada delas. Essa loja em Londres de que falei atrás, a cinquenta metros da Oxford St., tinha uma ampla fachada toda envidraçada. Uma vez por semana, invariavelmente, verão ou inverno, com sol ou chuva, um senhor bem velho, a barba e o cabelo de um branco sujo, o rosto muito vincado de profundas rugas, vestindo uma roupa modesta e já bem surrada, parava no lado de fora da loja, com um balde e uma espécie de esfregona de borracha que pousava no chão, e ficava alguns momentos a olhar para a loja. Como ninguém saía a dizer-lhe alguma coisa, não hesitava, lavava com capricho e lentamente toda a vidraça, só a parte externa. Ao acabar puxava de um cigarrinho, acendia-o meticulosamente e ficava a aguardar. Alguém da loja então saía e dava-lhe já não me lembro quanto. Ele agradecia com um piparote na pala do boné, mas sem pronunciar uma palavra, e lá se ia com o seu balde e esfregona. Nunca entrou na loja, nunca pediu licença para lavar a vidraça, nunca fixou o preço do seu trabalho. Depois da primeira vez, funcionou pontualmente como um comboio inglês. Lavava algumas outras montras daquela rua, com o mesmo ritual. Possivelmente estava ilegal e assim, pensaria, driblava as leis britânicas.
  Quando eu via o velhinho naquela sua faina, invariavelmente me acudia à mente Thomaz, o inesquecível personagem de A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Certo que neste caso, a falta de juventude, encanto, mistério e charme afastava qualquer hipótese de ‘avanços’ alvoraçados das jovens das redondezas. Contudo, desde então, por vezes fico tentando adivinhar a nacionalidade daquele senhor e a razão de todo aquele ritual e sigilo. Teria ele lido o livro de Kundera? Era Tcheco?

  Ainda sobre as passadeiras de Lisboa. Acho que os génios que decidem de sua implantação nunca conduziram um carro, nem observaram o trânsito com atenção. Invariavelmente, elas estão pintadas a uns escassos dois metros das esquinas, o que significa, se é uma rua onde os carros dobram à direita, em ângulo reto, obrigatoriamente os carros ou estancam com uma travagem rápida, surpreendidos, ou não conseguem fazê-lo e avançam na faixa, em risco de atropelar algum pedestre menos ágil. Quando o motorista consegue parar e é seguido por mais carros, estes atravancam a rua de onde vêm ao ficarem parados para dobrar, ou para irem em frente, pois no espaço da esquina à passadeira só cabe, e mal, um carro... e está lá um.
     Não é pois por acaso que o maior número de atropelamentos nas cidades acontece exatamente nas ‘faixas de segurança’, como o demonstram as estatísticas. E apesar destes números, e apesar da enormidade de batidas nesses pontos, o serviço de trânsito não acorda. Porque não pintar essas faixas a pelo menos cinco metros das esquinas? Além do mais, obrigaria os pedestres a andarem um pouco, o que só lhes faria bem, e por vezes seriam poupados a um atropelamento. Enfim, os mistérios da administração pública municipal.

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