DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

MARIA AZEITONA

17.  MARIA AZEITONA
 Ainda a propósito de viagens e o que isso representa de surpresas e encantamentos. A minha primeira viagem ‘internacional’ aconteceu quando eu tinha apenas quinze anos (1939), a Espanha… e a pé.
   Fui passar uns dias nas férias grandes a casa do meu primo Luís, em Portalegre, e nessa cidade viviam dois colegas de Liceu, irmãos, que desafiei a irmos até Espanha, tão perto, e que eu estava louco por conhecer, mas eles não aceitaram o desafio. Contudo, numa festa de noivado para a qual me convidaram, numa parada por instantes da ruidosa música, apresentaram-me uma prima deles, mais velha, dizendo que ela iria a Espanha no dia seguinte. Gentilmente, ela convidou-me a acompanhá-la mas teríamos que partir muito cedo e voltaríamos à tarde. A rir, os primos tinham-ma apresentado como Maria Azeitona. Não percebi bem se eles riam por citarem uma alcunha e não o apelido verdadeiro, mas ela não reagiu e beijou-me nas duas faces como a um conhecido. Teria uns vinte e tal anos, cara redonda, amiga, um sorriso aberto, de formas generosas e uns olhos muito escuros e vivos que me mediam com curiosidade. “Estás mesmo preparado? Gostas de andar?”, perguntou-me. Estranhei a pergunta mas respondi afirmativamente, com convicção, apesar de muito bem saber que a Guerra Civil espanhola recém terminara, mais ou menos, pois era voz corrente que franquistas e republicanos ainda acertavam contas, aqui e acolá.
Às sete e meia da manhã fui ao encontro dela, no adro da Igreja na praça central, conforme havíamos combinado. Eu levava também mochila e nela parte de uma galinha assada e um pão alentejano e, na alma, muito entusiasmo. Ela beijou-me nas duas faces, como na véspera, estava séria e vestida com simplicidade e de mochila às costas. Começámos a caminhar, atravessámos a cidade já num despertar escondido e, em breve, continuámos pelos arredores de Portalegre, paisagem que já conhecia pelos meus passeios curiosos, salpicada de casas e quintinhas. Nestas o movimento já era muito, tratavam dos animais, e começavam a faina agrícola. Ao chegar a uma quinta pequena onde uma velhota estava a dar milho às galinhas, Maria beijou a mulher chamando-a de tia e depois continuou para os fundos onde havia um telheiro, junto do qual estava um rapaz que eu tinha visto na véspera com os meus colegas. Eles olharam-se e pareceu-me que nem trocaram bons dias. O rapaz olhou para mim e sem mais perguntou-me se eu já tinha andado de carroça. Respondi que sim, na quinta do meu tio em Cabeda. Ele repetiu “Cabeda”, “Cabeda”, a rir, e acrescentou: “Então vamos lá!”e levou-nos até uma carroça carregada de espigas de milho. Ele ajudou Maria e a mim a subir para o banco do cocheiro, não sem antes pegar nas nossas mochilas e colocá-las em cima das espigas, deu a volta e instalou-se no seu posto. Com uma chicotada seca no ar, as mulas começaram a andar.
Pensava que iríamos nos meter pela estrada normal utilizada por carros e camionetas na ida para Espanha, mas não, ele optou por uma vereda larga que subia pela Serra de São Mamede, deixando o Parque do mesmo nome à esquerda. O rapaz, ouvira chamarem-no de José, incitava a parelha a andar rápido. Eu e Maria estávamos encostados, lado a lado, e eu sentia o calor do corpo dela no meu braço esquerdo, e gostava de o sentir. Contudo quase não falávamos, nem tão pouco ela com o rapaz. Antes pensara que eram namorados mas agora estava certo de que não, agiam como indiferentes um ao outro. Tinha muita curiosidade de saber se o nome verdadeiro dela era mesmo Azeitona, mas não me atrevia a perguntar. Algum tempo depois José abrandou a marcha, talvez para poupar os animais e porque o caminho já começara a subir bastante. A paisagem modificara-se muito, extensos pastos onde as ovelhas se amontoavam vigiadas por cães e ao longe a cumeeira da serra marcava o horizonte. Muros em pedra solta dividiam as propriedades e, de quando em quando, alguns pinheirais. Velhas oliveiras retorcidas pareciam implorar por ajuda. De vez em quando algumas perdizes eram espantadas pelo barulho das rodas da carroça no chão meio empedrado. No alto, águias e milhafres olhavam-nos atentos. Nós percorríamos um caminho em terra batida e granito, possivelmente ainda do tempo dos romanos, suficientemente largo para um carro de bois, evidenciando os sulcos deixados por estes. Era este o meu país rural, pobre, de terra tão mal aproveitada, depauperada, igual a si mesmo há séculos, depois de o ter conquistado aos árabes, depois de tantos invasores o terem dominado.
  Chegámos a uma aldeia a que ela chamou de Alagoinhas, e mesmo na entrada junto a um cercado e a uma casa velha a carroça parou e nós descemos. Do campo surgiu um homem com roupas de trabalho na terra que pediu a José para encostar a carroça mais adiante, junto a um telheiro. Retirámos as mochilas da carroça e Maria com presteza ajudou-me a pôr a minha às costas e depois ajustou a sua, bem pesadona, nas suas. Entretanto já o rapaz levara a carroça sem sequer um adeus ou outra frase.
  Maria sorriu para mim e pronunciou um “agora vamos” com um misto de preocupação e determinação, e talvez de dúvida sobre a minha resistência. Enfiámos na aldeia onde ela entrou numa taberna, bebeu um copo de tinto e comeu dois bolinhos de bacalhau. Eu só bebi uma soda e paguei as duas despesas enquanto ela foi à casa de banho. Atravessámos a curta aldeia e voltámos ao mesmo caminho ‘romano’. Ela andava muito rápido, em largas passadas,  desconfiei que estava a testar-me, mas  eu conseguia acompanhá-la. Pouco depois ela abrandou o passo e ficou mais fácil conversarmos.
  Durante o percurso falámos muito pouco, mas mesmo assim Maria revelou-me que fazia esta viagem três vezes por semana, verão ou inverno, com sol ou chuva. Com naturalidade, confessou que era como ganhava a sua vida, o que de imediato não entendi. A paisagem continuava igual mas o calor aumentara. Felizmente além da mochila havia me precavido com um cantil, o que me tranquilizava. De terras de Espanha nada, ela dissera-me que era perto, já caminhávamos há algum tempo, e assim interpelei-a: “Maria, quando chegaremos a Espanha?” Ela riu alto e afirmou que já lá estávamos. Fiquei desiludido, esperava uma cena de cinema, cercas de arame farpado, soldados com capacete e cara de maus, empunhando espingardas com baionetas. “E a fronteira, os guardas onde estão?”, “É muito cedo, eles só andam a farejar por aqui mais tarde, e raramente. Eles preocupam-se mais com a estrada, em especial com as camionetas e camiões.” Perante a minha cara de parvo ela acrescentou que levava na mochila café, açúcar, sabão e não sei mais o quê, que vendia lá, e de lá trazia outras tantas coisas mais caras ou raras em Portugal, como os caramelos. “Desta forma — continuou ela — garanto uns tostões para viver.”
  Passado algum tempo atrevi-me a indagar: “E se os guardas aparecerem?”, “Ora, são como alimentos para uso pessoal, só trago um pacote de cada coisa. Já ando nisto desde os dezasseis anos e eu conheço todos os guardas portugueses, assim como eles a mim e à minha família.”
  Eu era um garoto de família citadina e burguesa, ingénuo, tonto, ainda não sabia as voltas que os adultos (e mais tarde percebi que também os garotos) davam (e dão nos dias de hoje) para conseguir um precário sustento, a sobrevivência a pulso. Ao voltar para a comodidade da casa dos meus pais senti-me um pouco constrangido por ter tanto com tão pouco esforço. Por isso, para financiar as minhas compras de livros e discos (tinha a minha grafonola) passei a dar explicações e a datilografar textos para conhecidos. Mas adulto, adulto mesmo, conhecer a realidade das dificuldades da vida, só o fui ser na Venezuela, emigrante, e como doeu!

   Chegados a uma pequena cidade, El Pino, por volta do meio-dia, Maria Azeitona encaminhou-se decidida para o centro da cidade que eu tentava olhar com curiosidade. A cidade encantava-me, mas na realidade nada tinha de muito diferente de outras pequenas cidades portuguesas, a não ser muito mais, mas muito mais, movimento e agitação, de pessoas e cavalos, mulas e bicicletas. Mas era uma cidade simpática e eu esforçava-me para achar tudo maravilhoso.
Pouco adiante chegámos a um jardim e Maria pediu para eu ficar por ali, ou dar umas voltas, mas para estar dali a três quartos de hora num largo que me apontou, redondo e rodeado de pérgulas muito floridas (sei só hoje que eram glicínias e buganvílias), com alguns bancos com muitos homens e mulheres à conversa. Ela afastou-se apressada e eu dei algumas voltas pelas cercanias a bisbilhotar as montras, e numa mesa de rua de um bar tomei outra soda. Voltei ao parque, ao largo florido, todos os bancos estavam vazios, as pessoas teriam saído para almoçar em suas casas. Mal sentei, Maria chegou sem mochila, bem penteada e refrescada, lavara a cara e maquilhara-se ligeiramente. Estava alegre e logo que se sentou puxou de uma bolsa de pano duas cervejas e com um sorriso passou-me uma. Pensei em recusar pois não bebia cerveja, mas hesitei em confessá-lo com medo de estragar a minha imagem de caminhador valente. Ela tirou ainda do saco dois papo-secos, dois queijos de cabra secos, pequenos, um naco de chouriço e uma navalha de ponta e mola e ofereceu-mos. Eu saquei o meu pão alentejano cortado às fatias e a galinha e repartimos tudo. Bebi a cerveja pelo gargalho e a malvada subiu muito rapidamente para os meus ouvidos e para o couro cabeludo. Tudo zunia um pouco mas aguentei firme e, à medida que comia, melhorava. Tentava recordar-me de um western a que assistira há pouco, com John Wayne, uma cena similar, mas no filme o cowboy e a mocinha aqueciam uma lata de feijão numa fogueira improvisada, enquanto nós roíamos um pão seco mas, sim, com um queijo gostoso. Mas eu estava contente.
  Acabada a ‘lauta’ refeição, Maria avisou-me que teríamos que esperar para voltar ao armazém (não sabia do que ela estava a falar) e que era bom descansarmos um pouco para enfrentarmos o regresso. Chegou-se mais para a ponta do banco e convidou-me a pousar a minha cabeça nas pernas dela para dormitarmos um pouco. Deitei-me no banco e encostei a minha cabeça naquela almofada, a verdade é que constrangido de início e entusiasmado depois. Maria logo adormeceu, parecia-me, de olhos fechados e respirando ritmadamente, enquanto eu, que pela primeira vez gozava da sensualidade de uma adulta, aquecia o meu rosto afogueado na tepidez daquelas pernas, escutava (?) o sangue dela a correr nas veias, ouvia a sua barriga a trabalhar e respirava o seu odor forte… e perturbador. Não conseguia dormir de tão excitado, até que Maria descuidadamente pousou uma das suas mãos na minha anca, eu estava deitado de lado. Para minha surpresa, preocupação e vergonha, isso excitou-me de tal forma que ejaculei, pela primeira vez sem a ajuda da minha mão. Não sei, não sei mesmo, se ela percebeu. Quero crer que não. Depois, quando nos levantámos do banco, fui até uma casa de banho pública no parque para me limpar tanto quanto possível.
  Como sempre, em grandes passadas atravessámos alguns quarteirões e chegámos a uma loja com um grande ‘Almacén Vargas’ pintado por cima da porta, que estava fechada. Ela bateu numa porta dos fundos, que logo se abriu. Entrámos. Em cima de um balcão estava a mochila dela já abarrotada. Uns quantos pacotes sobravam. Maria Azeitona perguntou-me confiante: “Não te importas que use a tua mochila?” Acenei apenas com a cabeça enquanto ela já colocava na minha mochila vazia, que retirara das minhas costas, os tais pacotes. Suspendeu-a para avaliar o peso, exclamou um “Aguentas bem, tu és forte.” (o que me encheu de alegria), e ajudou-me a colocá-la nas costas. Como o calor estava forte e eu vestia um casacão por causa do frio da madrugada, que despira, pedi-lhe para enrolá-lo e colocá-lo no topo da mochila. Ela assim o fez, parecia que estava a encilhar um cavalo, ideia que lhe terá passado também pela cabeça, tanto que me deu uma palmada na nádega e gritou um enérgico “vamos!”.
  Atravessámos de novo a cidade, àquela hora deserta pela ‘siesta’, alguns gatos e cães dormiam pelos cantos e à nossa passagem abriam displicentemente os olhos para avaliarem o perigo que poderíamos representar. “Porque temos que ir a esta hora com tanto calor?”, perguntei à minha companheira, possivelmente mais porque era o caminho para o fim daquela ‘amizade’, estávamos a encurtar o tempo de estar juntos. “Agora os ‘tipos’ estão a fazer a sesta à sombra das árvores, não nos incomodarão.”, retorquiu de modo maroto. Obviamente que não queria encontrar os guardas, apesar do que dissera. Ou talvez se referisse apenas aos espanhóis.
   Enquanto palmilhávamos de regresso por aquela paisagem agreste, agora envolta num mormaço palpável, a evaporação do solo e das plantas criava uma ténue e baixa neblina, eu sentia-me um herói, agora que também carregava contrabando e era portanto um contrabandista, como nos filmes, o que me enchia de orgulho apesar de ainda não ter qualquer consciência política, mas sentia-me adulto ao lado de Maria… não queria pronunciar Azeitona, pensei em Maria Olive, para finalmente em apenas Olívia.
  Chegados a Alagoinhas, tivemos de esperar um pouco pela carroça que estava a carregar. A mulher a quem Maria chamara de tia convidou-nos a esperar em sua casa, melhor dito na cozinha, muito grande em relação à casa, com uma ampla lareira onde um imenso fogão estava acesso, estaria sempre, em cima do qual muitos tachos e panelas fumegavam. Sem mais a senhora encheu duas malgas com sopa e entregou-me uma e outra a Maria. Estava uma delícia, mas não tive coragem de repetir, ao contrário de Maria que exclamou: “Oh Tiazinha está muito boa, vou repetir!” Ao servi-la de novo a tia encheu um copo de tinto e colocou-o à frente da sobrinha, que lhe agradeceu beijando-lhe a mão.
   A carroça chegou cheia de melões, mas o José estava mal-encarado, ou bebera muito ou alguma coisa não lhe tinha corrido bem. Durante todo o tempo da volta não soltou uma palavra e parecia incomodado com a minha conversa com Maria, em especial com as risadas frescas desta.
  Ao chegarmos a Portalegre a carroça parou para nós descermos, eu apertei a mão ao José e agradeci a boleia, ele resmungou apenas e logo que descemos saiu em disparada. Maria pegou a minha mão com naturalidade e encaminhou-se para uma mercearia num dos bairros. Entrou, pousou a sua mochila no balcão e aliviou-me da minha. Encarando um homem de cabelos já grisalhos disse apenas: “Este foi o meu companheiro hoje, Pai!” O homem olhou-me surpreso, com um trejeito de incredulidade (o que me enfureceu) e pronunciou um seco ‘Olá’. De furioso, não pronunciei sequer uma palavra. Maria (ou Olívia, já não estava certo) esvaziou as duas mochilas no balcão, enfiou a dela no ombro e deu-me a minha. Sem mesmo se despedir dos presentes, saiu puxando-me pela mão.
  “Vamos refrescar a goela!” falou a rir e alegre, sem me soltar a mão. Sentámo-nos numa pequena esplanada e ela mandou vir duas cervejas. Eu travei e substituí uma por uma limonada. Conversámos muito, pouco, muito pouco dela, que se escapulia de o fazer, em especial sobre mim e os meus familiares, hábitos e estudos, e de Lisboa, que ela não conhecia mas que amaria visitar. Um pouco precipitadamente, ofereci-lhe a minha casa, digo a dos meus pais, confiante na compreensão deles que os filhos tanto desafiavam. Dei-lhe o telefone lá de casa, ela ficou a olhar o papelzinho e depois olhou-me e disse: “És um querido! Gostei muito de te conhecer. Não acreditei que aguentasses a caminhada.” Levantou-se, eu também, ela colocou uma das mãos no meu ombro e beijou-me as pálpebras: “Tens uns olhos muito bonitos. Vais ter muitas namoradas.” Virou as costas e caminhou sem olhar para trás, enquanto eu, estacado, apreciava o seu andar e já sentia saudades. “Será que nunca mais a vejo?”, perguntei-me. Não, nunca mais a vi, nem tive notícias dela, pois nem me telefonou nem os primos voltaram para o meu Liceu. Eu também nunca mais voltei a Portalegre. Mas nunca me esqueci de Maria Azeitona, a minha secreta Olívia, uma terna recordação que acalentei por algum tempo, quem sabe se até hoje.
  Não, não foi bem uma viagem, mas foi importante para mim, para o meu imaginário. Outras foram muito mais significativas em termos pragmáticos, outras em que substituí a carroça pelos jatos, o pão com queijo por restaurantes famosos, a cerveja por vinhos recomendados. Foi uma viagem simples onde não conheci monumentos, museus, grandiosos edifícios. Mas por outro lado, sei que foi a minha primeira viagem ao mundo maravilhoso da mulher e do amor, da amizade e da camaradagem sem distinção de sexos.
   Sim, mais importante em termos práticos foram outras viagens, como a ida para a Venezuela, a minha primeira visita de volta a Lisboa depois de vinte anos ausente, e o meu regresso ao meu país, inesperado e definitivo, outros vinte anos decorridos. Quem sabe se falarei delas aqui?
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