14. IMAGINÁRIOS GANHADORES
Há algumas semanas
atrás, a Troika chegou de novo a Portugal, a primeira vez depois do fim da
intervenção de ‘ajuda’ financeira, ou seja, a propagada e patética ´independência’
anunciada por Portas. Pompa e circunstância como o habitual, as figuras sérias
em trajes formais e escuros atravessando os corredores ministeriais repetidas
mil vezes nos noticiários, além do enxame de repórteres atrás de declarações.
Como sempre, era manifesta
a arrogância e a clara determinação desses enviados dos credores internacionais
para vigiar a gaveta da caixa registadora do país ainda devedor. Entre outros
temas, o aumento de vinte euros no salário mínimo. Um absurdo, porque terão os
trabalhadores portugueses que receber aumento para um cafezinho diário (sem
bolo), indagavam?
Na primeira reunião,
enquanto um empregado da cantina servia água, sumos, cafezinhos e bolos, os
troikianos notaram algo que não lhes agradou, apesar de não conseguirem detetar
de imediato o que era. Depois, entre eles, concordaram que os ‘sim-senhor’, os
numerosos funcionários superiores de vários Ministérios, que sempre forneciam
os mais recentes dados económicos e sociais, estavam diferentes, apáticos,
distraídos, vagos. A suspeita surgiu pela boca do fmiano: “talvez a China ou os
Emirados estivessem em negociações para pagarem a dívida de Portugal e ocuparem
a posição de credores.” E lá se iam os jurinhos e, quiçá, os seus empregos. De
imediato foram selecionados dois dos seus colaboradores para irem às ruas e
assuntar o povo para descobrir o que acontecia.
Exatamente 24 horas
depois, os colaboradores reuniram-se com a comissão da Troika e contaram o que
tinham descoberto. Muito simples: os portugueses, todos, todos mesmo, nesses
dias deixaram de se interessar pela discussão do orçamento, pela percentagem de
desempregados, pela confusa colocação de professores nas escolas e a não
abertura das aulas, pelo volume da dívida pública, pela paralisação absurda dos
tribunais… e tudo o mais que antes os afligiam. De momento, a grande
preocupação era o chorudo prémio do Euromilhões, uns redondos 190 milhões de
euros. Nada menos! Saíra para um compatriota de… Castelo Branco. Essa era a
informação. Mas a quem concretamente?
A Troika tranquilizou-se, mas as mais variadas conjunturas
multiplicaram-se, voaram de boca em boca, mas logo eram ultrapassadas por
outras. Porque o ganhador não tinha aparecido para receber o prémio? Estranho!
Teria morrido de um ataque de coração, ao saber que ganhara tanto dinheiro? Teria
deixado o boletim do jogo no bolso da camisa que fora para a máquina de lavar e
lá ter sido desfeito sem ele próprio se lembrar onde guardara o boletim? Teria
o sortudo perdido o boletim do jogo em algum lugar e não sabia, nem saberá, que
era um feliz sorteado? Teria o filho bebé roído o boletim até ter ficado
irreconhecível para desespero do pai?
Um matutino enviou um
jornalista à agência em que fora preenchido o boletim ganhador, mas o Sr.
António, o gerente, afirmou que deveria haver algum equívoco, pois conhecia
todos os que lá jogavam e continuava a ver todos eles na sua pacata vidinha.
Foi o suficiente para nas conversas de café entrar na baila a tese da Cabala.
Sim, afirmavam alguns, perentoriamente, a Direção do Euromilhões, como o prémio
já estava muito alto, e não havendo premiado, resolvera ‘inventar’ um premiado
e, portanto, nenhum apostador iria receber. Pelo que a dita Direção resolvera
forjar um boletim com os números sorteados, já após o sorteio e, por certo,
teriam dividido o bolo entre eles. Esta notícia foi logo aceite como a razão
mais natural e desencadeou profunda indignação. Alguns sugeriram que deveria
ser constituída uma Comissão de Inquérito para deslindar o assunto. Também não
tardou a que muitos indignados partissem para apedrejar algumas agências da
CGD.
Com tanto alarido e
notícias desencontradas, todos, e cada um dos portugueses, imaginou-se ‘o
premiado’. Porque não? Porque não eles que jogavam religiosamente todas as
semanas? Muitos levaram tão a sério essa hipótese de serem o ‘ganhador’,
convenceram-se de tal modo, que tiveram que ser assistidos nos hospitais.
Infelizmente, um senhor de 85 anos acabou por falecer de AVC.
Alguns noticiários
enfocaram que, segundo a Lei, o premiado, se aparecesse para receber, teria que
pagar ao Fisco 20% do prémio, exatamente 38 milhões. O que provocou outra onda
de indignação entre os imaginários ganhadores que vociferavam: “um absurdo, um
assalto, roubarem o ‘meu’ dinheiro!” Muitos escreveram cartas e enviaram
mensagens para deputados e governantes a exigir a revogação de uma lei tão
injusta e cruel.
Entretanto, centenas
de milhares de ‘sortudos’, imaginários mas convictos, elaboravam planos de como
gastar esses ‘seus’ 152 milhões, que ainda ‘restavam’. Para uns, era a ajuda
aos filhos, aos netos e à família em geral; para outros, dar a volta ao mundo
num luxuoso navio de cruzeiros; a maior parte comprava uma casa fantástica para
viver, dois ou três ponderaram comprar a de Ricardo Salgado que, pensavam, ele
deveria estar a querer vender.
Porém, o Sr. Manuel
Alves ficou indeciso se comprava outra casa. Sim, a sua moradia é modesta, mas
afinal toda a vizinhança é sua amiga, ali ele nasceu e se criou, todos os
vizinhos tinham ido ao enterro da sua mãe e ficaram solidários com ele quando a
mulher o abandonou, com duas crianças pequenas para criar. Mudar para onde
ninguém o conhecia e não lhe daria os bons dias? Afinal, concluiu que o melhor
era dar uma boa reformadela na casa, comprar um Renault, desses que estão
anunciando, e ir de férias para o Algarve, umas semanas. Afinal, teria que ver
bem para que dava aquele dinheirão, que felizmente ‘ganhara’, ele que ganhava
423 euros mensais, e a sua atual companheira, 226 euros de inserção social,
teriam que pensar bem o que fazer do dinheiro. E falou isso mesmo com ela.
Finalmente a mídia
notificou que o premiado havia comparecido para receber o prémio, sem revelar o
nome, idade ou profissão, e outros detalhes mais precisos, o que continuou a alimentar
a desconfiança nos mais céticos. Mas em geral, o balão daqueles sonhos dourados
rebentou como picado por um alfinete e cada um voltou ao seu dia a dia e
preocupações: o que fazer com o garoto ainda sem professor; como e quando consertar
o telhado da casa, pois chovia num dos cómodos; continuar mesmo desesperançado
o envio de currículos para tentar emprego; continuar a visitar a velha mãe que
mora numa aldeia longe, doente e solitária; tratar, assim que possível, de
levar o velho carro para a oficina; tentar mais uma vez com o patrão algum
aumento do salário há tanto tempo congelado, etc. etc. etc.
Afinal é natural as
pessoas que enfrentam uma vida difícil, um dia, por alguma razão mesmo sem
nexo, sonharem bonito e jogarem para debaixo do tapete os problemas mais
imediatos. Lembro-me bem que, quando vivia no Brasil, uma noite fui deitar-me
às duas da manhã, desesperado porque o noticiário a que acabava de assistir
dava como certo o uso da bomba atómico pela Rússia sobre a América, ou ao revés.
Estávamos no auge da Guerra Fria e as reportagens eram assustadoras. Fui
deitar-me, dormi inquieto e no dia seguinte ao levantar-me corri para a minha
televisão, mas infelizmente ela não estava a funcionar por problemas de antena,
o que acontecia sempre, e não consegui ver os noticiários. Desci para tomar um
café e comprar algum jornal. No quiosque, o grande destaque era de dois jornais
desportivos, num: “Jardel danificou irremediavelmente o joelho de Rubinho.”; no
outro: “Rubinho por causa do menisco não jogará domingo.” Fiquei a reler as
manchetes e a abismar-me como, para aqueles jornais, e certamente para os seus
leitores, o importante era o próximo Fla-Flu. Saberiam que os russos ameaçavam
lançar uma bomba atómica que pulverizaria todos os Rubinhos e Jardéis e o
próprio Maracaná? Ou preferiam não saber?
Enquanto me recordo
desse dia estou a barbear-me. Olho-me no espelho e pergunto àquela cara
ensonada e cheia de espuma: “E tu?”
Eu? Eu sei, sei bem
que neste exato minuto, dezenas de milhares de mulheres estão a ser violadas;
que neste exato minuto, centenas de milhares de crianças estão a passar a mais
absoluta fome; que neste exato minuto, milhares de velhos estão a morrer em
camas ou macas de hospitais, abandonados pelos seus próprios filhos; que neste
exato minuto, muitos milhares de assassinatos estão acontecendo; que neste
exato minuto, milhares e milhares de famílias estão sendo expulsos das suas
casas pelos bancos; que neste exato minuto, estão sendo roubados muitos e muitos
milhões dos cofres públicos, por funcionários e políticos desonestos; que neste
exato minuto, uma imensidade de jovens está a se drogar e a se destruir; que
neste exato minuto, um milhão e meio de sírios, a maior parte mulheres e
crianças, estão a viver na Turquia em frágeis tendas, onde faltam água,
alimentos e remédios… e que o principal responsável continua impune e
milionário; que neste exato minuto, milhões de metralhadoras estão sendo
produzidas e vendidas para quem não as devia usar. Eu sei, eu sei tanto mais.
Olho-me no espelho, de barba feita, passo uma loção e vou ao meu dia. Atravesso o quarto e na TV ligada vejo os Senhores da Troika a dar a entrevista final sobre esta recente missão entre nós. Parece-me que não estão contentes nem otimistas com o país. Mas voltarão. Voltarão como abutres à volta da carniça. Virão raspar os últimos tostões da gaveta da caixa registadora do país
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Pai, o blog 14 é uma obra-prima.
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