DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

domingo, 14 de dezembro de 2014

IMAGINÁRIOS GANHADORES

14. IMAGINÁRIOS GANHADORES
 Há algumas semanas atrás, a Troika chegou de novo a Portugal, a primeira vez depois do fim da intervenção de ‘ajuda’ financeira, ou seja, a propagada e patética ´independência’ anunciada por Portas. Pompa e circunstância como o habitual, as figuras sérias em trajes formais e escuros atravessando os corredores ministeriais repetidas mil vezes nos noticiários, além do enxame de repórteres atrás de declarações.
 Como sempre, era manifesta a arrogância e a clara determinação desses enviados dos credores internacionais para vigiar a gaveta da caixa registadora do país ainda devedor. Entre outros temas, o aumento de vinte euros no salário mínimo. Um absurdo, porque terão os trabalhadores portugueses que receber aumento para um cafezinho diário (sem bolo), indagavam?
  Na primeira reunião, enquanto um empregado da cantina servia água, sumos, cafezinhos e bolos, os troikianos notaram algo que não lhes agradou, apesar de não conseguirem detetar de imediato o que era. Depois, entre eles, concordaram que os ‘sim-senhor’, os numerosos funcionários superiores de vários Ministérios, que sempre forneciam os mais recentes dados económicos e sociais, estavam diferentes, apáticos, distraídos, vagos. A suspeita surgiu pela boca do fmiano: “talvez a China ou os Emirados estivessem em negociações para pagarem a dívida de Portugal e ocuparem a posição de credores.” E lá se iam os jurinhos e, quiçá, os seus empregos. De imediato foram selecionados dois dos seus colaboradores para irem às ruas e assuntar o povo para descobrir o que acontecia.
  Exatamente 24 horas depois, os colaboradores reuniram-se com a comissão da Troika e contaram o que tinham descoberto. Muito simples: os portugueses, todos, todos mesmo, nesses dias deixaram de se interessar pela discussão do orçamento, pela percentagem de desempregados, pela confusa colocação de professores nas escolas e a não abertura das aulas, pelo volume da dívida pública, pela paralisação absurda dos tribunais… e tudo o mais que antes os afligiam. De momento, a grande preocupação era o chorudo prémio do Euromilhões, uns redondos 190 milhões de euros. Nada menos! Saíra para um compatriota de… Castelo Branco. Essa era a informação. Mas a quem concretamente?
A Troika tranquilizou-se, mas as mais variadas conjunturas multiplicaram-se, voaram de boca em boca, mas logo eram ultrapassadas por outras. Porque o ganhador não tinha aparecido para receber o prémio? Estranho! Teria morrido de um ataque de coração, ao saber que ganhara tanto dinheiro? Teria deixado o boletim do jogo no bolso da camisa que fora para a máquina de lavar e lá ter sido desfeito sem ele próprio se lembrar onde guardara o boletim? Teria o sortudo perdido o boletim do jogo em algum lugar e não sabia, nem saberá, que era um feliz sorteado? Teria o filho bebé roído o boletim até ter ficado irreconhecível para desespero do pai?
  Um matutino enviou um jornalista à agência em que fora preenchido o boletim ganhador, mas o Sr. António, o gerente, afirmou que deveria haver algum equívoco, pois conhecia todos os que lá jogavam e continuava a ver todos eles na sua pacata vidinha. Foi o suficiente para nas conversas de café entrar na baila a tese da Cabala. Sim, afirmavam alguns, perentoriamente, a Direção do Euromilhões, como o prémio já estava muito alto, e não havendo premiado, resolvera ‘inventar’ um premiado e, portanto, nenhum apostador iria receber. Pelo que a dita Direção resolvera forjar um boletim com os números sorteados, já após o sorteio e, por certo, teriam dividido o bolo entre eles. Esta notícia foi logo aceite como a razão mais natural e desencadeou profunda indignação. Alguns sugeriram que deveria ser constituída uma Comissão de Inquérito para deslindar o assunto. Também não tardou a que muitos indignados partissem para apedrejar algumas agências da CGD.
  Com tanto alarido e notícias desencontradas, todos, e cada um dos portugueses, imaginou-se ‘o premiado’. Porque não? Porque não eles que jogavam religiosamente todas as semanas? Muitos levaram tão a sério essa hipótese de serem o ‘ganhador’, convenceram-se de tal modo, que tiveram que ser assistidos nos hospitais. Infelizmente, um senhor de 85 anos acabou por falecer de AVC.
  Alguns noticiários enfocaram que, segundo a Lei, o premiado, se aparecesse para receber, teria que pagar ao Fisco 20% do prémio, exatamente 38 milhões. O que provocou outra onda de indignação entre os imaginários ganhadores que vociferavam: “um absurdo, um assalto, roubarem o ‘meu’ dinheiro!” Muitos escreveram cartas e enviaram mensagens para deputados e governantes a exigir a revogação de uma lei tão injusta e cruel.
  Entretanto, centenas de milhares de ‘sortudos’, imaginários mas convictos, elaboravam planos de como gastar esses ‘seus’ 152 milhões, que ainda ‘restavam’. Para uns, era a ajuda aos filhos, aos netos e à família em geral; para outros, dar a volta ao mundo num luxuoso navio de cruzeiros; a maior parte comprava uma casa fantástica para viver, dois ou três ponderaram comprar a de Ricardo Salgado que, pensavam, ele deveria estar a querer vender.
 Porém, o Sr. Manuel Alves ficou indeciso se comprava outra casa. Sim, a sua moradia é modesta, mas afinal toda a vizinhança é sua amiga, ali ele nasceu e se criou, todos os vizinhos tinham ido ao enterro da sua mãe e ficaram solidários com ele quando a mulher o abandonou, com duas crianças pequenas para criar. Mudar para onde ninguém o conhecia e não lhe daria os bons dias? Afinal, concluiu que o melhor era dar uma boa reformadela na casa, comprar um Renault, desses que estão anunciando, e ir de férias para o Algarve, umas semanas. Afinal, teria que ver bem para que dava aquele dinheirão, que felizmente ‘ganhara’, ele que ganhava 423 euros mensais, e a sua atual companheira, 226 euros de inserção social, teriam que pensar bem o que fazer do dinheiro. E falou isso mesmo com ela.
  Finalmente a mídia notificou que o premiado havia comparecido para receber o prémio, sem revelar o nome, idade ou profissão, e outros detalhes mais precisos, o que continuou a alimentar a desconfiança nos mais céticos. Mas em geral, o balão daqueles sonhos dourados rebentou como picado por um alfinete e cada um voltou ao seu dia a dia e preocupações: o que fazer com o garoto ainda sem professor; como e quando consertar o telhado da casa, pois chovia num dos cómodos; continuar mesmo desesperançado o envio de currículos para tentar emprego; continuar a visitar a velha mãe que mora numa aldeia longe, doente e solitária; tratar, assim que possível, de levar o velho carro para a oficina; tentar mais uma vez com o patrão algum aumento do salário há tanto tempo congelado, etc. etc. etc.

  Afinal é natural as pessoas que enfrentam uma vida difícil, um dia, por alguma razão mesmo sem nexo, sonharem bonito e jogarem para debaixo do tapete os problemas mais imediatos. Lembro-me bem que, quando vivia no Brasil, uma noite fui deitar-me às duas da manhã, desesperado porque o noticiário a que acabava de assistir dava como certo o uso da bomba atómico pela Rússia sobre a América, ou ao revés. Estávamos no auge da Guerra Fria e as reportagens eram assustadoras. Fui deitar-me, dormi inquieto e no dia seguinte ao levantar-me corri para a minha televisão, mas infelizmente ela não estava a funcionar por problemas de antena, o que acontecia sempre, e não consegui ver os noticiários. Desci para tomar um café e comprar algum jornal. No quiosque, o grande destaque era de dois jornais desportivos, num: “Jardel danificou irremediavelmente o joelho de Rubinho.”; no outro: “Rubinho por causa do menisco não jogará domingo.” Fiquei a reler as manchetes e a abismar-me como, para aqueles jornais, e certamente para os seus leitores, o importante era o próximo Fla-Flu. Saberiam que os russos ameaçavam lançar uma bomba atómica que pulverizaria todos os Rubinhos e Jardéis e o próprio Maracaná? Ou preferiam não saber?
 Enquanto me recordo desse dia estou a barbear-me. Olho-me no espelho e pergunto àquela cara ensonada e cheia de espuma: “E tu?”
  Eu? Eu sei, sei bem que neste exato minuto, dezenas de milhares de mulheres estão a ser violadas; que neste exato minuto, centenas de milhares de crianças estão a passar a mais absoluta fome; que neste exato minuto, milhares de velhos estão a morrer em camas ou macas de hospitais, abandonados pelos seus próprios filhos; que neste exato minuto, muitos milhares de assassinatos estão acontecendo; que neste exato minuto, milhares e milhares de famílias estão sendo expulsos das suas casas pelos bancos; que neste exato minuto, estão sendo roubados muitos e muitos milhões dos cofres públicos, por funcionários e políticos desonestos; que neste exato minuto, uma imensidade de jovens está a se drogar e a se destruir; que neste exato minuto, um milhão e meio de sírios, a maior parte mulheres e crianças, estão a viver na Turquia em frágeis tendas, onde faltam água, alimentos e remédios… e que o principal responsável continua impune e milionário; que neste exato minuto, milhões de metralhadoras estão sendo produzidas e vendidas para quem não as devia usar. Eu sei, eu sei tanto mais.
Olho-me no espelho, de barba feita, passo uma loção e vou ao meu dia. Atravesso o quarto e na TV ligada vejo os Senhores da Troika a dar a entrevista final sobre esta recente missão entre nós. Parece-me que não estão contentes nem otimistas com o país. Mas voltarão. Voltarão como abutres à volta da carniça. Virão raspar os últimos tostões da gaveta da caixa registadora do país 
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