10. PÁGINAS DE PRAZER
Como escrevi
anteriormente, no início de 1955, estava eu sem trabalho e sem qualquer
negócio, pois havia saído deliberadamente da Editorial Andes. Por uma questão
de ética, achei que não deveria criar, pelo menos de imediato, uma outra
editora e publicar títulos de autores que publicara na Andes.
Contudo, havia um
autor, não da Andes, Hugo Schesinger, com o qual mantinha uma boa amizade,
independentemente da área editorial. Ele organizava livros de referência, sobre
indústrias e produtos de todo o Brasil, muito úteis naquela época e naquele
imenso país em rápido desenvolvimento, que apareciam como edições de autor, e
eram. Ele sugeriu que os editasse e distribuísse, pois o esquema de vendas dele
era fraco e tinha pouco tempo para se ocupar da produção. Passei a editá-los,
já nem me lembro com que chancela, e a distribuí-los. Publicava edições
pequenas, que eram atualizadas constantemente, apesar de infelizmente não
haver, então, o recurso a edições digitais. Estamos a falar de obras com
informações atualizadas, indispensáveis num país imenso e em constante
transformação e crescimento. Na realidade, esses livros vendiam bem, por serem
únicos no género, e a venda era quase exclusivamente pelo correio, pelo que
geravam uma boa margem de lucro.
Pensar nessas edições, hoje, dá-me até vontade de rir, pois
qualquer dessas informações que esses guias prestavam, atualmente, em segundos,
na net, cá estão.
Esse meu amigo e
autor dirigia uma grande fábrica de móveis de aço, em São Paulo, e insistiu
para eu representar essa linha de modernos móveis para escritórios no Rio. Não
era uma proposta sedutora para mim, mas entretanto nascera o meu terceiro
filho. Topei!
Não foi fácil, a
concorrência era grande e desleal, principalmente nos fornecimentos para o
governo, que era onde se ganhava. Consegui penetrar em alguns ministérios e
secretarias, mas as concorrências eram publicadas de forma a respeitar acordos
anteriormente estabelecidos entre os habituais fornecedores e os compradores.
Era, é, o Brasil.
Em toda a minha vida
comercial sempre tentei seguir caminhos diferentes dos outros concorrentes,
pois invariavelmente comecei independente de ricos e dos grandes grupos,
portanto, com dificuldades. Foi assim
que achei por bem sugerir à fábrica que criassem um cofre sólido e pesado, mas
pequeno, oitenta centímetros de altura e cinquenta por cinquenta de lados.
Estes cofres pequenos são normais atualmente, mas na época, modelos deste tipo
não eram produzidos.
Consegui uma reunião
com a direção geral dos Correios (então ainda no Rio, sede do governo, Brasília
nem ainda era um sonho), e propus-lhes o tal modelo com um argumento de peso: nas
agências, quando o(s) funcionário(s) durante o expediente, ou de um dia para o
outro, eram revezados, como só havia um cofre, parava tudo para a conferência
de existências. Ora, isso resolvia-se -- afirmava eu à Direção dos Correios --
se cada funcionário tivesse o ‘seu’ cofre, que fecharia e abriria com
exclusividade. Vendi bem a ideia, em breve saiu o edital para a venda de
quatrocentos e tal cofres com estas especificações. Ganhei facilmente pois a
concorrência não poderia fabricar cofres com essas características rapidamente,
enquanto nós já estávamos a produzir, no prazo estabelecido no Edital da
Concorrência. Aquando da entrega, os outros fornecedores, por despeito,
obrigaram o funcionário recebedor a serrar um dos cofres, para conferir se entre
as paredes duplas havia amianto, como era exigido, e tinha. Foi uma boa venda.
Entretanto eu
organizara uma equipe de meia dúzia de senhoras para vender estes cofres para
as madames. Argumento: lá podiam guardar as joias e os perfumes franceses, muito
caros, e que estando à vista ‘evaporavam-se’ rapidamente. Três ou quatro
vidrinhos pagavam o cofre. As vendedoras levavam uma lista de preços desses
perfumes para exercerem essa aritmética.
Contudo, apesar de,
no ‘lavar dos cestos’, conseguir manter-me razoavelmente, queria sair deste
tipo de negócio. Não me agradavam as relações que era obrigado a manter nesta área.
Tratei de conseguir alguém de confiança para continuar essa representação, não
queria deixar mal o meu amigo, enchi-me de coragem e… voltei ao livro, que era
para mim o chamamento do oásis na travessia do deserto de aço.
Com pouco dinheiro,
teria que limitar as edições e concentrar-me a publicar somente em temas
determinados, para poder ter maior poder
de oferta. Fundei a EDITORA PÁGINAS, só com duas coleções: Páginas de Cinema e
Páginas de Teatro, temas absolutamente descurados pelos outros editores
brasileiros. Fui o editor brasileiro que mais editou nesta área, e em língua
portuguesa. O meu irmão Rogério Moura, na Livros Horizonte, publicou muitos dos
livros publicados pela Páginas e editou muitos outros de sua seleção.
A Páginas vendia bem
em livrarias, porém o forte das vendas era pelo correio para os associados dos
cineclubes, que nessa época proliferavam como cogumelos. E naqueles tempos de
livrarias fracas nas cidades não muito grandes, no Brasil os transportes eram
demorados e caros, os livros demoravam a chegar às pequenas livrarias, pelo que
era uma vaidade receber um livro em primeiro lugar, antes de chegar às
livrarias, pelo correio, para poder ler primeiro mas, também, para poder exibir
aos amigos.
Adorei esta editora,
tanto pelos livros que publicava, pois sempre adorei cinema e teatro, como
porque a sede era uma sala no 18º andar num edifício novo, no Largo da Carioca,
nesses tempos o centro nevrálgico do Rio. Dela desfrutava-se de uma linda vista
para o Convento de Santo António e para o casario velho construído pelos
portugueses, nas ruas em continuação desse morro.
Além de sede, a sala
também era livraria, só de livros de cinema e teatro em diversos idiomas, e
praticamente todos os publicados no Brasil. Falta mencionar algo de muito
importante: num canto, funcionava um barzinho onde rolava o uísque e
caipirinhas, na companhia de alguns salgadinhos.
A frequência desta
livraria era maioritariamente de quem trabalhava em cinema, TV e teatro. As
conversas eram muito ricas e, por vezes, acaloradas. De realizadores posso
citar Alex Viana, Nélson Pereira dos Santos, Lima Barreto, Alberto Cavalcanti,
Glauber Rocha e outros. De artistas, uma longa lista que nem cito. De
escritores para teatro e cinema: Augusto Boal, meu bom e saudoso amigo,
fundador do Teatro de Arena também em Portugal, Vinícius de Moraes, Salviano de
Paiva, Abdias do Nascimento, fundador e diretor do Teatro do Negro do Brasil, e
outros. De alguns destes editei os seus livros.
Ocorre-me relatar um
evento interessante promovido pela Páginas.
Como o cineasta Alex Viana estava interessado em adaptar ao cinema Orfeu
da Conceição, uma peça teatral de Vinícius de Moraes, resolvemos promover uma leitura pelo próprio
autor, para um público de empresários,
no excelente auditório da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Uma
tentativa de encontrar um produtor ou patrocinador para o filme, que não
conseguimos.
Mais tarde, o
realizador francês Marcel Camus interessou-se pela peça e realizou Orfeu do
Carnaval, filme esse que ganhou a Palma de Ouro em Canes (1959) e o Óscar
do melhor filme estrangeiro (1960). Trilha sonora de Tom Jobim e outros
compositores brasileiros, não mencionados nos créditos. Essencialmente com intérpretes
brasileiros, negros, é uma produção franco/italo/brasileira. Inspirado na
Mitologia grega, de Orfeu e Eurídice, em que Eurídice (Marpessa Dawn) se
apaixona por Orfeu (Bruno Melo), que tem uma noiva, a bela Mira (Léa Garcia),
que se enfurece de ciúmes. O filme é lindíssimo e o seu ponto alto são as cenas
do Carnaval, em que a Morte (belo desempenho do tricampeão olímpico de salto triplo
Ademar Ferreira dos Santos) persegue Eurídice até que ela na fuga morre
eletrocutada. Numa sessão espírita, Orfeu recupera o corpo de Eurídice, o que
enraivece Mira e acaba por provocar a queda de Orfeu num precipício com
Eurídice nos braços.
Revi com muito
prazer este filme há dias.
Foi talvez a editora
que me deu maior satisfação, mas que não durou tanto quanto desejaria. A razão
foi que tive que largá-la para enfrentar um desafio maior, um voo muito alto
que afoitamente resolvi enfrentar. Fui convidado para criar uma grande editora
de Ciências Sociais pelo Prof. Bilac Pinto (deputado, senador, embaixador do
Brasil em Paris), proprietário da maior editora de livros de Direito do Brasil,
a Revista dos Tribunais. Era um homem de uma família muito rica, ligada à área
bancária, mas principalmente muito culto, inteligente e correto.
Deste convite nasceu
a Editora Fundo de Cultura, da qual qualquer dia falarei.
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