6. JAZZ E LITERATURA
Adoro jazz, como
também a Bossa Nova. Contudo, antes e mais ainda, a música erudita. Enfim, sou
um admirador e um consumidor de música, em geral, desde garoto. Tenho centenas
de CDs de música clássica, de jazz e de bossa nova. Ainda não aderi às novas tecnologias,
meio piratas, mas não por razões éticas,apenas porque deliberadamente não quero saber o como.
Quando leio livros
escuto música instrumental, e deixo a cantada para leitura de imprensa e outras
ocasiões. Mas hoje quero falar só de jazz. É longa a lista dos meus preferidos,
e variada, mas não up to date, talvez Wynton Marsalis seja o
mais moderno. Os outros são por demais conhecidos: Miles Davis, Dizzy Gillespie,
Count Basie,
B. B.
King, Gill Evans, Duke Ellington, Louis Armstrong, Chet Baker, Charlie Parker
(Bird),Stan Getz,Oscar Peterson, não
na ordem de preferência, como instrumentistas, mas não só. No jazz sinfónico, o extraordinário e
melódico George Gershwin, maravilhoso. Cantores masculinos: Ray Charles, Cole
Porter, mas quase todos os instrumentistas também cantam, como o Gillespie e o
Armstrong. As três melhores cantoras: Mahalia Jackson
(que eu, agnóstico, ao ouvi-la, vejo nitidamente o Deus poderoso ao qual
ela dirige as suas súplicas e agradecimentos),
Dinah Washington e Bessie Smith. A seguir, claro, as mais
celebradas: Ella Fitzgerald, Billie Holiday
e Sarah Vaughan, a que devo acrescentar Aretha Franklin, Helen Merril, Nina
Simone, Carla Bley e Shirley Horn.
Há algumas semanas,
de volta do Brasil, para enfrentar aquelas longas horas noturnas naquela lata
de sardinhas gigantesca, tão espetacular quanto preocupante, peguei um livro de
bolso de edição brasileira (L&PM) de Julio Cortázar,
uma antologia de contos intitulada A autoestrada do Sul, que como sabem
é um dos seus contos mais emblemáticos, e dos mais loucos, ali incluído.
Um relato de um enorme engarrafamento numa autoestrada para Paris, no qual os
personagens não são tratados pelos seus nomes mas sim pelas marcas dos seus
carros. Reli-o com prazer.
A agradável surpresa:
um conto dele que eu desconhecia, “O Perseguidor”, onde, apesar de não o citar
pelo nome, mas sim por Johnny Carter, com mestria Cortázar escreve sobre a vida e o génio de Charlie Parker, mais conhecido por Bird. Uma
maravilhosa e extensa análise (é mais uma novela do que um conto) do processo
de criação do referido ‘monstro’ do jazz, da sua obsessão pelo tempo e dos
seus, não poucos, tormentos privados. Passo a citar alguns textos (respeitando
exatamente o estilo e grafia), para vosso deleite:
Diz Bruno, o
narrador, jornalista residente em Paris, onde também se encontra Parker:
“Ninguém mais sabe quantos instrumentos ele já perdeu, empenhou
ou destruiu. E em todos tocava como acredito que um deus é capaz de tocar sax
alto, supondo-se que os deuses tenham renunciado às liras e flautas.”
“”Porque
depois da passagem de Johnny pelo sax alto não é mais possível continuar
ouvindo os músicos anteriores e acreditar que são um não plus ultra; …
Johnny passou pelo jazz como uma mão que vira a página e fim de papo.”
“Mas só ele pode fazer
o inventário do que colheu enquanto tocava, e provavelmente já terá passado a
outra coisa, perdendo-se numa nova conjectura ou numa nova
suspeita. Suas conquistas são como um sonho, ele as esquece ao despertar,
quando os aplausos o trazem de volta, a ele, que está tão longe vivendo o seu
quarto de hora de um minuto e meio.”
“Mas nesse momento,
dono de uma música que não facilita os orgasmos nem a nostalgia, de uma música
que eu gostaria de poder chamar de metafísica, Johnny parece contar com ela
para explorar-se, para morder a realidade que todos os dias se esquiva a ele.”
E as palavras de
Johnny/Charlie:
“A música me tirava
do tempo. Sei muito bem que isso é só maneira de dizer. Se você quer saber o
que eu verdadeiramente sinto… acho que a música me fazia entrar no
tempo. Só que aí é preciso acreditar que este tempo não tem nada a ver com…
bom, connosco, por assim dizer.”
“… se eu conseguisse viver apenas como
nestes momentos, ou como quando estou tocando e o tempo também se altera. Você
dá conta de quantas coisas podem acontecer em um minuto e meio? E aí um
sujeito, não só eu, mas também aquela dali e você e todas as pessoas, poderiam
viver centenas de anos.”
“É um sax incrível, ontem fiquei com a sensação de estar
fazendo amor enquanto tocava. Se você visse a cara da Tica quando acabei. Era
ciúme, Tica?”
Enquanto o ronco das
turbinas ecoava forte lá fora, eu aprofundava-me na leitura e ouvia
nitidamente, de memória, um espetacular solo do Bird, maravilhoso,
envolvente, que me ajudou a ultrapassar o aborrecimento da viagem. Não pude,
claro, deixar de me lembrar do excelente filme Bird, no qual Clint Eastwood
nos apresenta magistralmente, como lhe é habitual, a trajetória de glória e
derrota deste tão infeliz, quanto ímpar, saxofonista.
Vem tudo isto a
propósito de eu querer assinalar, aqui, o poder da escrita e o deleite da
leitura, quando o autor é bom, muito bom como Cortázar. Na realidade ele oferece-nos uma história de vida de Parker, romanceada e
informal mas muito séria, com profundidade e humanidade, desse músico que se
destruía compulsivamente pelas drogas e álcool, enquanto os amantes da sua
música o ouviam bebericando alegremente. Texto que nos permite um melhor
conhecimento desse saxofonista, mas também genericamente do jazz, como música
renovadora e desafiadora, visceral e telúrica, que emanou da revolta e da
esperança, da segregação social e da dor da negritude sofrida através dos
tempos.
Sorte para nós, leitores, podermos, com a maior facilidade,
ter acesso a estes textos.
***
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