DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

FANTASIAS

          12.  FANTASIAS
   Numa postagem anterior, falei da minha paixão à música, tanto bossa nova como jazz e, especialmente, música chamada clássica ou erudita. Contudo, a música foi, e talvez ainda seja, a maior frustração da minha vida. Explico porquê.
   A minha irmã Isabel (a mais velha e a única mulher dos cinco irmãos), estudava francês em casa, piano e não sei o que mais, ou seja, professoras a domicílio, como era a norma das famílias burguesas dos anos trinta. Pois bem, quando ela chegou ao sexto ano teve que estudar harmonia, certamente fora das atribuições da gorducha e simpática senhora que ia lá em casa lecionar piano, acho que duas vezes por semana. A solução foi a minha irmã matricular-se na Academia dos Amadores de Música, então na Rua António Maria Cardoso (hoje na Rua da Misericórdia).
  Mas, como uma menina de boa família na época não podia andar sozinha na rua, pois a vizinhança torceria o nariz a essa audácia e falta de decoro, lá fui eu escalado para a acompanhar no trajeto para a Academia. Eu, o terceiro dos irmãos, com apenas oito anos, como se um frangalhote pudesse ser um respeitável guarda-costas. Morávamos na Rua Quatro de Infantaria, a um quarteirão da Ferreira Borges e a dois da Silva Carvalho, onde apanhávamos o elétrico, que nos deixava exatamente na porta da Academia.
  Como eu ficava sem nada que fazer enquanto decorriam as lições da minha irmã, inscrevi-me no primeiro ano de piano e, em pouco tempo, a professora estava entusiasmada com o meu progresso e afirmava à minha irmã que eu tinha muita vocação. Um dia, o diretor da Academia passou casualmente na sala onde eu tocava, interessou-se em saber quem era eu, perguntou-me se eu tinha linhagem musical, não, não tinha. Saiu da sala para logo voltar com alguns dos seus alunos de anos mais adiantados para eles “verem como se colocavam os dedos no piano!”. Até hoje não sei como era, mas o certo é que ele, mais de uma vez, voltou a exibir a minha perícia ou habilidade.
  Por esta razão, fiquei bastante convencido que a minha vocação e vida futura seria a de pianista, claro de grande sucesso, e via-me de fraque, em maravilhosos palcos de todas as grandes cidades culturalmente de renome a ser entusiasticamente aclamado pelo público. Em casa praticava bastante, primeiro num pianinho caquético que havia sido da minha irmã, mas depois, atrevido, avancei para o belo Steinway, a melhor marca de pianos, pelo menos então, que o meu pai tão benevolentemente comprara para a Isabel.
   De quando em quando, era necessário afinar o piano, como é da praxe. Aparecia então um afinador, cego, vindo do Instituto Feliciano de Castilho, mesmo em Campo de Ourique. Ele vinha sozinho pelos passeios, atravessava as ruas, é certo que havia pouco movimento de carros. Andava devagar e com cuidado servia-se de uma bengalinha branca, equipada por uma sineta como a das bicicletas, com a qual ele alertava outros transeuntes e rompia a espessa escuridão dos seus passos. Angustiava-me vê-lo assim tão desprotegido, parecia-me um passarinho caído do ninho, tanto que, por vezes, quando ele saía lá de casa, segui-o para o acompanhar naquele passeio cego e incauto pelas ruas, em vez de mais inteligentemente lhe dar o braço e conversar com ele, mas tinha receio que ele se ofendesse.
   Lá em casa, ao afinar o piano, ele premia uma tecla de cada vez, esticava o pescoço e virava a cabeça para o alto, como que a perseguir no ar a nota emitida. Premia a tecla mais umas vezes, sempre a perseguir no espaço, para ele apenas densa escuridão, o som ideal. Ficava muito tempo nesta afinação, o que irritava alguns lá em casa, mas ao contrário a mim enfeitiçava-me. Eu queria atinar como ele ouvia, a mim mais parecia que os ‘via’, aqueles sons, e como os adestrava. Um dia, atrevi-me e perguntei-lhe o que me intrigava há muito, se ele via cores diferentes conforme as notas. Ele ficou algum tempo calado, o que me levou a pensar que ficara zangado comigo, mas depois muito delicadamente perguntou-me porque eu lhe fazia aquela pergunta, “não sendo eu cego”. E continuou, que sim, via cores conforme as notas, e a tonalidade, conforme soava mais forte ou mais fraca, ajudava-o a afinar o piano. Não terá sido assim exatamente que ele me falou, mas foi assim que entendi. Quando lhe falei que também via cores ao ouvir música de olhos fechados ele manifestou espanto e sorriu, como quem encontra um parceiro simpático. Pela primeira vi um sorriso naquele rosto tão triste.
  Na realidade, eu gostava de ouvir música deitado e de olhos fechados. Não tardava a sinfonia de sons que ouvia a rivalizar com a de cores que via, o que me divertia muito. Por isso, naquele momento, senti uma grande identificação com aquele cego, já tão velhinho, ou o era só aparentemente, penso agora, um senhor tão competente e tão misterioso que deixava o Steinway afinadíssimo.
    O que é curioso é que passados não muitos anos, no início da Segunda Grande Guerra, Disney lançou nos ecrãs de cinema Fantasia, um filme extraordinário que eu vi mais de uma dúzia de vezes. Apresentava oito peças musicais de grandes compositores, e criava histórias com pessoas e animais adequadas à música, em uma ou duas só com cores. Direção musical da Orquestra de Filadélfia pelo renomado maestro Leopold Stokowski.
   Apenas para informação, as músicas eram: “Tocata e Fuga em Ré Maior”, de Bach, “Uma Noite no Monte Calvo”, de Mussorgsky, “Suite Quebra-Nozes”, de Tchaikovsky, “Sinfonia Pastoral”, de Beethoven, “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, “Dança das Horas”, de Ponchielli, “O Aprendiz de Feiticeiro”, de Dukas e “Ave Maria”, de Schubert.
  Apesar da sua beleza, teve críticas verdadeiramente idiotas, o filme não fez muito sucesso inicialmente, e só a partir de 1960 é que passou a ser tão apreciado quanto merecia. Felizmente em 2000 foi lançado em DVD, para minha alegria e de muitos milhares de melómanos.
  Mas, voltando ao afinador. Não sei a razão por que, enquanto o mirava na sua persistente busca dos sons, eu aliava o seu trabalho com o que se contava sobre o genial Beethoven, surdo, surdíssimo, que para compor tocava nas teclas do piano com a mão esquerda, enquanto encostava o ouvido no piso, e talvez a mão direita, para, imaginem só, pelas vibrações das tábuas alcançar a leitura da sua própria partitura. E eu, miúdo tonto, perguntava-me: “Será que aquele compositor, sem dúvida um dos maiores de todos os tempos, também via cores quando premia as teclas?” Quem sabe, talvez o dó em vermelho, quem sabe se o ré em rosa, porque não o mi em azul?
  Ao escrever estas linhas resolvi fazer uma experiência. Afundei-me na poltrona enquanto ouvia, de olhos fechados, durante algum tempo, a magistral interpretação de “The Art of the Fugue”, de Bach, por Glenn Gould. Adorei, mas não, não vi cores. Há muito que não fazia esta ‘entrega’. Afirmei que via cores ao ouvir música, quando jovem, em casa dos meus pais, e lembro bem que ficava estendido num divã junto das janelas da marquise que continuava a sala de jantar. Era lá que se encontrava a ‘telefonia’ barata, de marca Pilot, branca, que irradiava a Emissora Nacional, com programas de música clássica. A marquise era totalmente envidraçada e o Sol banhava o meu rosto, talvez por isso a razão das nuvens coloridas que me alegravam. Ou talvez, com a idade e falta de prática, tenha perdido essa maravilhosa faculdade. Seja como for, foram e serão momentos inolvidáveis para mim.

  Fiz o primeiro e o segundo ano de piano com bom aproveitamento e elogios da professora. No final do segundo ano, como é habitual, aconteceu um recital especialmente para os pais dos alunos dos vários anos. A minha professora, que tinha uma filha a aprender piano paralelamente comigo, teve a ideia luminosa de nos apresentar a tocar em conjunto, creio que uma valsa de Chopin. Começámos com desenvoltura, tínhamos ensaiado muito, até que a coleguinha se enganou. Eu, em vez de continuar a tocar, para dar a oportunidade de ela retomar o acompanhamento, parei, levantei-me do tamborete furioso e vociferei: “Eu bem sabia que não devia acreditar em mulheres de olhos verdes!” Foi uma gargalhada geral e, certamente, o ponto alto e mais divertido da apresentação. Devo dizer que a professora nos incitou a repetir e, dessa vez, tudo decorreu bem.
  Passaram-se oitenta anos, sim oitenta, e até hoje não consigo explicar a razão da minha sanha contra os olhos verdes, de que eu nem sequer tinha conhecimento. Felizmente que no decorrer da minha vida adorei e amei alguns olhos dessa bela cor.

  Comecei este texto a falar em frustração. Explico. Quando entrei no primeiro ano de Liceu, no Pedro Nunes, tinha então dez anos, inscrevi-me também no terceiro de piano na Academia. No final das aulas, à tarde, quando eu dizia que ia ter lições de piano, a chacota era geral, chamavam-me de maricas e outros nomes pouco simpáticos. A verdade é que naqueles anos os jovens não tinham a idolatria do rock, pois nem existia, os meus colegas desconheciam os grandes intérpretes de jazz, e para eles o piano era apenas para meninas. Os ‘machões’ não tocavam piano.
Fui dizer à minha professora que queria desistir do curso e expliquei-lhe as razões. Ela levou-me ao diretor que tentou convencer-me a continuar, mas eu estava inflexível, o meu prestígio masculino estava em jogo. O diretor sugeriu o violino, e lá fomos conversar com o professor deste lindo instrumento, que tanto apreciava e que continuo a adorar. A desilusão foi grande quando ele falou que, naquela idade, apesar de apenas dez anos, segundo ele, eu nunca conseguiria a flexibilidade necessária dos pulsos para ser um bom violinista. Desta forma, nem piano, nem violino, tão pouco tambores ou flauta lisa para encantar incautas, como na Mitologia. Desisti.
  A partir daí fui apenas ouvinte, um entusiasta e perseverante ouvinte, com muita alegria e uma boa coleção de CDs. Mas, lá no mais profundo do meu coração, quando ouço um Horowitz, um Glenn Gould ou um Pollini, Ashkenazy ou Argerich, sinto uma dorzinha no peito. Mas logo me conformo e grito para mim mesmo: “Não sejas parvo, aproveita enquanto podes ouvir com deleite estes maravilhosos intérpretes ou outros. Tu nunca serias um bom pianista, acredita!”
 Então, serenamente, coloco Maria João Pires a interpretar magistralmente os “Noturnos” de Chopin e o mundo volta a sorrir-me. Sou um felizardo.
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