DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A ESCALADA... 'DA ANDES'



8.  A ESCALADA… DA ‘ANDES’
  Entre o que um jovem de dezanove anos sonha que será a sua vida futura e, depois, com noventa anos, relembra da sua vida, há uma diferença abissal. A diferença de um livro de Nora Roberts para Camorra.
Em março de 1948, eu estava preso no Forte de Caxias, incomunicável, e estava muito longe de imaginar que em março de 1953, apenas cinco anos depois, estaria no Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, dirigindo uma editora, de que era sócio. E muito menos poderia pensar que, nesse entretempo, tivesse vivido na Venezuela e no Canadá, onde, na primeira, dirigi uma carpintaria e uma fábrica de tijolos, fui vendedor de perfumes e batons, dono de uma fábrica de caramelos e, por fim,  de uma boa agência de viagens em Caracas e, também, em Montreal.
Também poderá parecer estranho a alguns leitores que eu sem qualquer prática no ramo da edição, sem especialização nas artes gráficas ou em marketing (que na altura se dizia vendas), sem dominar uma dúzia de idiomas, sem sequer ter um curso mais afim com a edição do que a Silvicultura, dizer que criei uma editora a partir do zero, pouco depois de chegar ao Brasil, como diz o povo “com uma mão atrás e outra à frente”. Será, portanto, natural que me perguntem: Teve o apoio de algum partido político? De alguma religião? De algum movimento com este ou aquele programa? De algum mecenas? Casou com mulher rica? Tinha um bolão de dinheiro guardado?
 Não, nenhum apoio institucional. Tão pouco capital próprio. Tinha chegado há pouco mais de um ano ao Rio… com a quantia “exata” para pagar apenas a renda de um mês de um quarto de estudante. E posteriormente não ganhei no ‘bicho’ (a lotaria clandestina brasileira).
  Acho que não foi estranho, apenas miraculoso, apenas o que eu chamo de a ‘força da vida’. Talvez, sim, muito de ousadia, determinação e perseverança. Passo a contar como sucedeu.
Poucos meses depois de ter chegado ao Brasil, fui contratado para dirigir a primeira pesquisa de ‘padrão de vida’ no Brasil, durante muitos meses. Pesquisa que serviria para determinar os ‘pesos’ dos gastos da população das classes mais baixas, para determinar o valor do primeiro salário mínimo e dos seguintes. Uma pesquisa nacional em cujo diretório participavam as dez principais instituições afins à matéria, como a Fundação Getúlio Vargas (a principal promotora e a que cedia a logística), o Banco do Brasil, o IBGE, etc. Os resultados desta pesquisa foram muito elogiados, em livro sobre essa experiência num país tão grande, pelo Padre Lebret, o notável sociólogo francês, que concebera essa pesquisa em geral e que elaborou os resultados finais. Nessa publicação final elogiou o meu trabalho.
    Conseguira esse trabalho por indicação de um amigo da minha infância e juventude, Luís de Vasconcelos, que era da equipe da revista Conjuntura Económica, da Fundação Getúlio Vargas, de quem eu me aproximei de novo ao chegar ao Brasil. Quando acabou a pesquisa, eu fiquei a trabalhar, como contratado, na Conjuntura Económica, sem dúvida a melhor e mais respeitada revista dessa matéria no Brasil.
  A certa altura, Luís, que tinha pegado de um editor um livro para traduzir, mas andava muito sem tempo para o fazer, pediu-me para me encarregar dessa tradução. Interessou-me pois era sobre demografia, área de meu interesse, e de autoria de um renomado demógrafo, Alfred Sauvy (um pequeno livro da coleção Que Sais-je?). Quando terminei a tradução, o Luís pediu-me para ser eu a ir à editora para entregá-la. Fui.
   A editora era um departamento editorial da Casa do Estudante do Brasil. Uma instituição politicamente muito forte, de apoio aos estudantes universitários de todo o Brasil (carente de universidades nos estados mais pobres). Contudo, essa editora publicava sem qualquer critério: poesia, discursos académicos, romances de novatos, enfim, o que entrava pela porta.
 Quando o editor, um homem bastante inteligente, me perguntou o que achava da editora, foi isso exatamente o que lhe disse, e acrescentei que com a responsabilidade e a imagem da C.E.B. teria que editar a nível universitário, exatamente como a Presse Universitaire de France. Um bom exemplo era o livro dessa editora que eu acabava de lhe entregar, sugestão editorial do meu amigo Luís. Após a primeira exaltação veio o diálogo que, aliás, se prolongou até à meia-noite, quando fechou a leitaria onde acabámos por ir para continuar o diálogo.
 Conversa vai, conversa vem, ele desafiou-me para eu o ajudar como empregado na direção da editora. Repliquei que sim, que poderia dirigir totalmente a editora da C.E.B., sem salário (não havia propriamente um salário, mas uma gratificação anual para o diretor, da qual também abdiquei). Contudo, coloquei três condições: lº - Ele continuava ‘oficialmente’ como diretor, mas na prática como conselheiro; 2º - Eu teria liberdade total para dirigir aquela editora; 3º - Nós criávamos uma editora comercial, paralela, usando as fracas estruturas existentes.
 Tive coragem para fazer esta proposta porque percebi que ele poderia interessar-se por ela, pois tinha ido para São Paulo, por razão da filha ser surda-muda e necessitar de frequentar o Instituto Helen Keller, e lá ter montado uma gráfica para viver, apesar de ser advogado.
 Ele propôs um outro sócio, amigo dele, um renomado cirurgião diretor de um hospital, mas com muito trânsito na área bancária, pois era mineiro (de Minas Gerais) e, então, todos os bancos fortes que operavam no Rio eram mineiros. Acordado: três sócios com quotas em partes iguais… e a realizar. Assim nasceu, no início de 1953, a Editorial Andes. A parte editorial e comercial ficava a meu cargo, a administrativa do outro sócio, o Dr. Lavigne, uma das melhores pessoas que conheci.
  Nesse tempo eu também trabalhava, à noite, na redação de um jornal vespertino, tabloide, e a minha função era preparar a página de política internacional, política essa que não interessava muito aos brasileiros, na época. Eu apanhava as longas fitas de papel que saíam continuamente do Telex e serpenteavam pelo chão, selecionava o noticiário a publicar, traduzia e enchia a página que me cabia. E ganhava uns trocados. Era uma ocupação muito agradável pela boa camaradagem, tanto na redação como nos ‘botecos’  da Lapa, onde se localizava o jornal.
 Estávamos em plena Guerra da Coreia e eram as notícias que enchiam as manchetes e que despertavam a atenção. Julgando-me já um grande editor, não tive dúvidas, o primeiro livro lançado pela na nova editora (a Andes) foi A Verdade sobre a Guerra da Coreia. Neste eu juntara dois grandes artigos publicados numa revista da especialidade, norte-americana, que cedeu free os direitos, e antecedi com uma longa introdução minha, citando bastante o nosso querido Eça de Queiroz, que tinha sido embaixador na Coreia. Vali-me da farta correspondência dele sobre o país, que explicava muito bem as razões do conflito.
 O livro saiu em abril de 1953… pelos caprichos da sorte exatamente na semana do armistício e, claro, ninguém mais queria saber a tal Verdade e a edição foi um fracasso. Primeiro round, K-O, para mim.
 Contudo, aprendi que, no futuro, não deveria editar livros ‘datados’, e fui em frente. Durante dois anos construí um catálogo generalista para a Andes, mais forte em três vertentes: pedagogia, relacionamento humano, cinema. Também aprendi quanto pude de artes gráficas, na oficina do meu sócio, em São Paulo, e palmilhei, ou seja, voei, por todo o Brasil para garantir uma distribuição nacional e conhecer a rede livreira do país, onde consegui muitos bons amigos.
  É verdade que viajava com muito pouco dinheiro e em condições que hoje acho incríveis. Mas conheci aquele fantástico Brasil, na época uma economia fraca e uma democracia incipiente. Que importavam as condições para aquele jovem idealista, se ele conheceu tantas cidades míticas, outras bem menos e atrasadas, mas um Brasil castiço, que ainda não via televisão e por isso cada região tinha uma identidade própria. Comi as refeições mais estranhas para mim, dormi em redes em hoteizinhos para viajantes, voei em aviões quase sucata, de companhias que faliram mais tarde. Visitava faculdades e livrarias, para conseguir autores e vendas, fiz amizades que duraram décadas.
  Paralelamente, renovei por completo a programação da editora da C.E.B., onde lancei Josué de Castro (Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, etc.), com grande sucesso; Manuel Bandeira (Guia de Ouro Preto, Apresentação da Poesia Brasileira e outros); Artur Ramos, o mais renomado antropólogo brasileiro (trabalhei com a viúva, doente de cama, na preparação da 2ª edição da sua obra mestre , Antropologia Brasileira); Sadoul (A Vida de Carlitos, o Charlot em Portugal); Adolfo Casais Monteiro, o meu bom amigo, etc. e tal.
  Entretanto a relação comercial Andes-Gráfica (do meu sócio) não ia bem, pois ele sacava letras em cima de obras ainda a imprimir, o que era ruim. Mas, pior ainda, também em cima da editora da C.E.B., o que para mim era inadmissível. Assim resolvi desligar-me da sociedade, numa boa. Recebi a minha parte em livros, que enviei para Portugal, para os meus irmãos distribuírem. E que foi uma boa experiência para eles, talvez não financeiramente.
Fim de linha para o meu primeiro e esforçado projeto editorial. O ano de 1955 estava a acabar e eu perguntava-me o que iria fazer.Tinha-me divorciado amigavelmente da minha primeira mulher, ficara com a guarda dos filhos, ainda muito pequenos, e aguardava um terceiro da minha segunda companheira.


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