8. A ESCALADA… DA
‘ANDES’
Entre o que um jovem
de dezanove anos sonha que será a sua vida futura e, depois, com noventa anos,
relembra da sua vida, há uma diferença abissal. A diferença de um livro de Nora
Roberts para Camorra.
Em março de 1948, eu estava preso no Forte de Caxias,
incomunicável, e estava muito longe de imaginar que em março de 1953, apenas
cinco anos depois, estaria no Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, dirigindo
uma editora, de que era sócio. E muito menos poderia pensar que, nesse
entretempo, tivesse vivido na Venezuela e no Canadá, onde, na primeira, dirigi
uma carpintaria e uma fábrica de tijolos, fui vendedor de perfumes e batons,
dono de uma fábrica de caramelos e, por fim,
de uma boa agência de viagens em Caracas e, também, em Montreal.
Também poderá parecer estranho a alguns leitores que eu sem
qualquer prática no ramo da edição, sem especialização nas artes gráficas ou em
marketing (que na altura se dizia vendas), sem dominar uma dúzia de
idiomas, sem sequer ter um curso mais afim com a edição do que a Silvicultura,
dizer que criei uma editora a partir do zero, pouco depois de chegar ao Brasil,
como diz o povo “com uma mão atrás e outra à frente”. Será, portanto, natural que
me perguntem: Teve o apoio de algum partido político? De alguma religião? De
algum movimento com este ou aquele programa? De algum mecenas? Casou com mulher
rica? Tinha um bolão de dinheiro guardado?
Não, nenhum apoio
institucional. Tão pouco capital próprio. Tinha chegado há pouco mais de um ano
ao Rio… com a quantia “exata” para pagar apenas a renda de um mês de um quarto
de estudante. E posteriormente não ganhei no ‘bicho’ (a lotaria clandestina
brasileira).
Acho que não foi
estranho, apenas miraculoso, apenas o que eu chamo de a ‘força da vida’. Talvez,
sim, muito de ousadia, determinação e perseverança. Passo a contar como
sucedeu.
Poucos meses depois de ter chegado ao Brasil, fui contratado
para dirigir a primeira pesquisa de ‘padrão de vida’ no Brasil, durante muitos
meses. Pesquisa que serviria para determinar os ‘pesos’ dos gastos da população
das classes mais baixas, para determinar o valor do primeiro salário mínimo e
dos seguintes. Uma pesquisa nacional em cujo diretório participavam as dez
principais instituições afins à matéria, como a Fundação Getúlio Vargas (a
principal promotora e a que cedia a logística), o Banco do Brasil, o IBGE, etc.
Os resultados desta pesquisa foram muito elogiados, em livro sobre essa
experiência num país tão grande, pelo Padre Lebret, o notável sociólogo francês,
que concebera essa pesquisa em geral e que elaborou os resultados finais. Nessa
publicação final elogiou o meu trabalho.
Conseguira esse
trabalho por indicação de um amigo da minha infância e juventude, Luís de
Vasconcelos, que era da equipe da revista Conjuntura Económica, da
Fundação Getúlio Vargas, de quem eu me aproximei de novo ao chegar ao Brasil.
Quando acabou a pesquisa, eu fiquei a trabalhar, como contratado, na Conjuntura
Económica, sem dúvida a melhor e mais respeitada revista dessa matéria no
Brasil.
A certa altura, Luís,
que tinha pegado de um editor um livro para traduzir, mas andava muito sem
tempo para o fazer, pediu-me para me encarregar dessa tradução. Interessou-me
pois era sobre demografia, área de meu interesse, e de autoria de um renomado
demógrafo, Alfred Sauvy (um pequeno livro da coleção Que Sais-je?).
Quando terminei a tradução, o Luís pediu-me para ser eu a ir à editora para
entregá-la. Fui.
A editora era um
departamento editorial da Casa do Estudante do Brasil. Uma instituição
politicamente muito forte, de apoio aos estudantes universitários de todo o
Brasil (carente de universidades nos estados mais pobres). Contudo, essa
editora publicava sem qualquer critério: poesia, discursos académicos, romances
de novatos, enfim, o que entrava pela porta.
Quando o editor, um
homem bastante inteligente, me perguntou o que achava da editora, foi isso
exatamente o que lhe disse, e acrescentei que com a responsabilidade e a imagem
da C.E.B. teria que editar a nível universitário, exatamente como a Presse Universitaire
de France. Um bom exemplo era o livro dessa editora que eu acabava de lhe
entregar, sugestão editorial do meu amigo Luís. Após a primeira exaltação veio
o diálogo que, aliás, se prolongou até à meia-noite, quando fechou a leitaria
onde acabámos por ir para continuar o diálogo.
Conversa vai, conversa
vem, ele desafiou-me para eu o ajudar como empregado na direção da editora.
Repliquei que sim, que poderia dirigir totalmente a editora da C.E.B., sem salário
(não havia propriamente um salário, mas uma gratificação anual para o diretor,
da qual também abdiquei). Contudo, coloquei três condições: lº - Ele continuava
‘oficialmente’ como diretor, mas na prática como conselheiro; 2º - Eu teria
liberdade total para dirigir aquela editora; 3º - Nós criávamos uma editora
comercial, paralela, usando as fracas estruturas existentes.
Tive coragem para
fazer esta proposta porque percebi que ele poderia interessar-se por ela, pois
tinha ido para São Paulo, por razão da filha ser surda-muda e necessitar de frequentar
o Instituto Helen Keller, e lá ter montado uma gráfica para viver, apesar de
ser advogado.
Ele propôs um outro
sócio, amigo dele, um renomado cirurgião diretor de um hospital, mas com muito
trânsito na área bancária, pois era mineiro (de Minas Gerais) e, então, todos
os bancos fortes que operavam no Rio eram mineiros. Acordado: três sócios com
quotas em partes iguais… e a realizar. Assim nasceu, no início de 1953, a
Editorial Andes. A parte editorial e comercial ficava a meu cargo, a
administrativa do outro sócio, o Dr. Lavigne, uma das melhores pessoas que
conheci.
Nesse tempo eu também
trabalhava, à noite, na redação de um jornal vespertino, tabloide, e a minha
função era preparar a página de política internacional, política essa que não
interessava muito aos brasileiros, na época. Eu apanhava as longas fitas de
papel que saíam continuamente do Telex e serpenteavam pelo chão, selecionava o
noticiário a publicar, traduzia e enchia a página que me cabia. E ganhava uns
trocados. Era uma ocupação muito agradável pela boa camaradagem, tanto na
redação como nos ‘botecos’ da Lapa, onde
se localizava o jornal.
Estávamos em plena
Guerra da Coreia e eram as notícias que enchiam as manchetes e que despertavam
a atenção. Julgando-me já um grande editor, não tive dúvidas, o primeiro livro
lançado pela na nova editora (a Andes) foi A Verdade sobre a Guerra da
Coreia. Neste eu juntara dois grandes artigos publicados numa revista da
especialidade, norte-americana, que cedeu free os direitos, e antecedi
com uma longa introdução minha, citando bastante o nosso querido Eça de
Queiroz, que tinha sido embaixador na Coreia. Vali-me da farta correspondência
dele sobre o país, que explicava muito bem as razões do conflito.
O livro saiu em abril
de 1953… pelos caprichos da sorte exatamente na semana do armistício e, claro,
ninguém mais queria saber a tal Verdade e a edição foi um fracasso.
Primeiro round, K-O, para mim.
Contudo, aprendi que,
no futuro, não deveria editar livros ‘datados’, e fui em frente. Durante dois
anos construí um catálogo generalista para a Andes, mais forte em três
vertentes: pedagogia, relacionamento humano, cinema. Também aprendi quanto pude
de artes gráficas, na oficina do meu sócio, em São Paulo, e palmilhei, ou seja,
voei, por todo o Brasil para garantir uma distribuição nacional e conhecer a
rede livreira do país, onde consegui muitos bons amigos.
É verdade que viajava
com muito pouco dinheiro e em condições que hoje acho incríveis. Mas conheci
aquele fantástico Brasil, na época uma economia fraca e uma democracia
incipiente. Que importavam as condições para aquele jovem idealista, se ele
conheceu tantas cidades míticas, outras bem menos e atrasadas, mas um Brasil
castiço, que ainda não via televisão e por isso cada região tinha uma
identidade própria. Comi as refeições mais estranhas para mim, dormi em redes
em hoteizinhos para viajantes, voei em aviões quase sucata, de companhias que
faliram mais tarde. Visitava faculdades e livrarias, para conseguir autores e
vendas, fiz amizades que duraram décadas.
Paralelamente,
renovei por completo a programação da editora da C.E.B., onde lancei Josué de
Castro (Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, etc.), com grande
sucesso; Manuel Bandeira (Guia de Ouro Preto, Apresentação da
Poesia Brasileira e outros); Artur Ramos, o mais renomado antropólogo
brasileiro (trabalhei com a viúva, doente de cama, na preparação da 2ª edição
da sua obra
mestre , Antropologia Brasileira); Sadoul (A Vida de Carlitos, o
Charlot em Portugal); Adolfo Casais Monteiro, o meu bom amigo, etc. e tal.
Entretanto a relação
comercial Andes-Gráfica (do meu sócio) não ia bem, pois ele sacava letras em
cima de obras ainda a imprimir, o que era ruim. Mas, pior ainda, também em cima
da editora da C.E.B., o que para mim era inadmissível. Assim resolvi
desligar-me da sociedade, numa boa. Recebi a minha parte em livros, que enviei
para Portugal, para os meus irmãos distribuírem. E que foi uma boa experiência
para eles, talvez não financeiramente.
Fim de linha para o meu primeiro e esforçado projeto
editorial. O ano de 1955 estava a acabar e eu perguntava-me o que iria fazer.Tinha-me divorciado amigavelmente da minha primeira mulher, ficara com a guarda
dos filhos, ainda muito pequenos, e aguardava um terceiro da minha segunda
companheira.
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