7-O CONTADOR DE ESTÓRIAS
A vaidade é terrível!
Contudo, é um poderoso motor para movimentar os indivíduos. É curioso como os
sentimentos negativos (o ciúme, a vaidade, o despeito, a raiva, o ódio, a
inveja e outros semelhantes) impulsionam mais as pessoas a agir do que os
sentimentos positivos (a bondade, o amor, a compreensão, a amizade, etc.), que
tendem acomodar as pessoas nas suas posições conquistadas.
A verdade é que então
(estamos a falar de abril do ano passado), animado pelos elogios de muitos dos
leitores a O Roxo dos Jacarandás, resolvi voltar à minha ideia inicial
de escrever alguns contos. Espremi o meu cansado cérebro e imaginei umas duas
ou três estórias, escrevi as suas sinopses e parti para desenvolvê-las.
Ao longo da minha
vida, de quando em quando, em especial nas noites mal dormidas ou nas
madrugadas preguiçosas, imaginava um conto, um artigo, um guião para um filme,
e, às vezes, não muitas, escrevia uma breve sinopse, a que chamava de
‘esqueleto’ e que guardava numa gaveta, na ilusão ou esperança de que o dia a
aproveitaria. Mas as gavetas mudaram muito, não gosto de guardar papéis, aliás
tenho horror a papéis do passado, e com o tempo tudo foi deitado fora, tantas
foram as mudanças (de países, cidades, casas) que fiz pela vida fora. Gostaria
de ter preservado alguns desses esqueletos, mas talvez de pouco servissem, pois
eram apenas um resumo, em letra ruim, criptografado, que já não daria a ideia
global do que imaginara nalguma madrugada.
É certo que nas
minhas leituras, ao contrário da maioria dos leitores, sempre privilegiei os
contistas, li e reli Tchekov, Gogol, O. Henry, Jack London, Nabokov, Cortázar,
Stefan Zweig, Fuentes, Sepúlveda, Mark Twain, Borges, Fitzgerald, Capote,
etc., etc.
Voltando à minha decisão de escrever contos. Peguei numa dessas
sinopses agora escritas, e era muito pobre, realmente apenas um ‘esqueleto’, e
ao buscar nela o fio da meada achei-me mais perdido do que num labirinto
mitológico. Não dava para me lembrar bem como imaginara a estória completa.
O processo passou a
ser sempre o mesmo. Ao pegar na sinopse para iniciar o conto não conseguia
imaginar como desenvolvê-la. Mas, à medida que ia escrevendo e criando ação, os
personagens iam aparecendo, como que convidados para um cocktail,
sentavam ou não, e logo dominavam a cena. Eu ficava feliz, pois era o primeiro
leitor desse meu próprio conto, antes não concebido desta forma, e que a maior
parte das vezes, ao estar terminado, resultava totalmente diferente da proposta
inicial.
Em três meses (abril,
maio e junho) escrevi dez pequenos contos, com os enredos e os personagens mais
diversos. Comecei por inventar um tio, excelente contador de estórias nos
nossos serões familiares, para justificar que eu, agora, tantas décadas depois,
ao recordá-las, me abalançasse a tentar reproduzi-las.
Pensei inicialmente
afirmar ter ganho, do meu pai, uma prenda nos meus quinze anos de um gravador e
que, passados setenta anos, descobri num sótão esse gravador e assim ter conseguido
ouvir as gravações e reproduzir as estórias do meu tio. Mas então perguntei-me:
Havia gravadores portáteis em 1940? Se havia, setenta anos depois teriam alguma
possibilidade de funcionarem ainda? E se sim, as fitas não estariam
irrecuperavelmente deterioradas?
Tive então a noção de
que um escritor tem que ter cuidado com as datas, ou seja, o que elas permitem
ou não. Lembrei-me como para produzir filmes e novelas há sempre uma competente
equipe de pesquisadores e historiadores. E eu, ainda não escritor, não dispunha
de uma equipe de 25 elementos (historiadores, técnicos, advogados,
pesquisadores, especialistas em arte, etc. e tal), como Ken Follett. Como não
estava disposto a perder tempo com averiguações, pura e simplesmente, mudei
para o facto de ter descoberto, nesse tal sótão, um diário da minha juventude e
que nele, obviamente, não figuravam as estórias do meu tio, mas apenas
referências a algumas delas. Assumi, assim, que as estórias eram de minha
autoria.
Comecei com um conto
sobre um touro, ou melhor, sobre touradas (“Miúra”), depois um outro (“ O
Ciúme”), a estória de um ciumento que imagina o que não acontece… e perde a
mulher que ama. A seguir, um conto (“O Velho Marinheiro”) que apresenta um
pintor frustrado que, na busca de pintar um quadro bom como nunca conseguira,
não hesita em sacrificar o seu modelo. O
quarto conto (“O Plágio”) é sobre um outro pintor que, estranhamente, escreve
uma novela… mas que já fora escrita
quarenta anos antes por um escritor estoniano. Passo depois para a estranha
aventura de dois rapazes (“Tia Rosa”) na qual, numa viagem com eles, a sua tia
morre num hotel onde ficaram, e as peripécias deles para levar a defunta para
casa. Mais dois contos pequenos: num (“Professor Napoleão”) um professor
desmemoriado aceita uma intervenção cirúrgica de implante de um chip para
recuperar a memória, e noutro (“Zuluaga”), passado na Venezuela, um careca
total recupera a cabeleira com um elixir doado por um índio, mas não recupera o
índio. No oitavo (“Una Birra Presto”), de que gosto especialmente, onde o
personagem é um rico e empreendedor executivo brasileiro, vindo do nada, que se
acompanha de um sagui, que a certa altura foge para a floresta para copiar o
estilo de vida do seu dono. Apresento então “O Pesadelo”, o encontro de dois amantes nos dias de hoje…
que tinham sido amantes há um século e a descoberta, pelo homem, de algo horrível nesse passado. Acabo com a descrição dos tormentos e
angústia de um preso político (o título é exatamente “O Prisioneiro”), na
prisão do Aljube, no período salazarista, claro. Experiência por mim mesmo
sofrida, numa das vezes em que fui detido pela PIDE.
O volume saiu em julho,
sob o título de O Contador de Estórias,
também em edição digital, não comercial, desta vez de cem exemplares,
pois entretanto tivera que reeditar mais trinta exemplares do “Roxo”. Saiu sob a marca de 4Estações, na realidade
uma edição de autor, não de uma editora, aliás como o primeiro romance.
Sinceramente, acho,
de uma maneira geral, estes contos de boa leitura e interessantes, mas claro
que é uma opinião para lá de suspeita. Ao relembrar alguns autores que li,
pergunto-me “porque escrevo?”, quando a comparação é abissal. Todavia, posso
dizer que foi para mim muito bom, muito estimulante, exercitar a minha
criatividade ao escrevê-los, e que tenciono continuar, publicando ou não.
Apesar do que acima
afirmo, resolvi inaugurar a editora que acabo de criar (4Estações-Editora) com
a publicação destes contos, sem qualquer ilusão de que venha a ser um sucesso
de vendas, conheço bem o mercado. Foi como que uma comemoração dos meus noventa
anos, na intenção de partilhar com desconhecidos aquilo que escrevi com tanto
empenho. Assim, posso ter a veleidade de pensar que, neste exato momento,
alguém esteja a ler essas estórias e a
agradar-se da sua leitura...
Lembram-se como comecei: “A vaidade é terrível!”?
Sem comentários:
Enviar um comentário