DeMoura



DeMoura é o nome literário de Mário Mendes de Moura, editor durante sessenta anos no Brasil ( Fundo de Cultura, Páginas, Vértice, etc.), em Espanha ( PluralSingular) e Portugal ( Pergaminho, Arte Plural, Bico de Pena e Vogais & Companhia). Em 2014 lança a sua mais recente editora, a 4 Estações.
A partir de 2013 dedica-se à escrita. "O Contador de Estórias" e o "Escultor de Almas", são os primeiros títulos publicados na coleção Estação Primavera e na 4 Estações Editora.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Os Jacarandás de Lisboa

3. OS  JACARANDÁS DE LISBOA

  Acabadas as listas, senti-me um potencial usuário de computador. Muito limitado, é certo, pois não viajo na net nem busco os outros quadradinhos desafiantes e aliciadores do ecrã.  Limito-me ao Word e ao Excel e, claro, a fazer e receber mails. Para mim é uma máquina de escrever sofisticada, graças à minha ignorância. Mas mesmo assim um mundo novo e amplo para quem só usava a caneta Bic. Dirão que há manuais, mas esta é o tipo de leitura que abomino. Além de chatos são mal escritos, pois o são por especialistas que, por saberem muito, não sabem explicar o simples e não sabem escrever. Deveriam ser elaborados por um técnico e um literato, claro não um escritor premiado. Tenho uma coleção de manuais que nunca li, nunca consultei, da máquina de filmar, da de fotografar, do iPhone, de aparelhos de televisão, da máquina de barbear, dos carros, etc. Talvez venha a tirar uma semana de férias só para ler esses manuais, e se quiser estender os meus conhecimentos aos segredos das máquinas domésticas (de lavar roupa e louça, do micro-ondas, do aspirador e de muitas outras), necessito de mais outra semana de férias.
  Certo dia, li num jornal que um hacker tinha entrado no sistema informático do Ministério da Marinha Norte-Americana, por certo muito blindado, e que tinha feito o diabo. Achei engraçado o feito deste David moderno contra um Golias ainda mais forte do que o bíblico, e daí surgiu-me a ideia de um conto muito simples: um escritor está a escrever um romance e um hacker entra de quando em quando no computador dele e muda o texto, piora ou melhora, não interessa. Claro que o escritor fica intrigado e indignado, mas uma noite tropeça  num jarrão que a mulher deixara no meio do corredor, acorda e constata que é sonâmbulo e que era ele próprio que se levantava e emendava os seus textos escritos de dia.
Em janeiro de 2013, sentei frente ao meu Toshiba e comecei a escrever o que tinha imaginado. Pouco depois, entra de roldão uma cena de uma senhora num leito de um hospital, nos momentos finais, rodeada daquela parafernália de aparelhos, médicos e enfermeiras, hoje habitual e muitas vezes absolutamente inútil e, até, um esquema mal-intencionado. Descrevi o quadro como o estava a ver até que percebi, surpreendido, que era a cena que tinha vivido pouco tempo antes, ao acompanhar o caso do meu irmão Rogério hospitalizado, nas mesmas condições, que terminou pelo seu falecimento à minha frente, rosto com rosto, angustiante. O que eu tinha escrito era idêntico ao que eu tinha assistido e sofrido. Hesitei se continuava ou não, até que desisti, deixei a estória parada. Não me sentia bem em colocar no papel aqueles momentos tão traumáticos e tão íntimos. Parecia-me um desrespeito à memória do irmão que amei muito.
  Algum tempo depois (fevereiro), venci a minha indecisão e voltei ao teclado. Melhorei o texto e transformei-o num filho que assiste à morte da mãe nessas condições, sendo que o filho cursava numa universidade inglesa. Continuei com o velório e a cremação, nas condições a que eu assistira, com bastante perplexidade pelo atual ritual do culto dos mortos. A seguir apresento o filho na sua dor e desconforto e, ao mesmo tempo, na sua tentativa de entender a vida do pai, também já falecido, e da mãe, dos quais ele se afastara tanto, em razão dos estudos, mas que amara, e com os quais se sentia como que em dívida pelo afastamento. Ao mesmo tempo, a descoberta paulatina do seu passado e o reencontro com uma vizinha e amiga de infância, parcialmente incapacitada.
  Enquanto permanece em Lisboa, o estudante começa a escrever um romance e também acontecia que alguém entrava e corrigia o texto dele, ele percebia que melhorava, mas queria descobrir. (Claro, não vou aqui revelar o mistério.)
 Usei Campo de Ourique como palco de tudo isto, pois é o bairro onde eu nasci e me criei, onde mora toda a minha família, e era para eles que eu estava a escrever. Em dois meses tinha um romance de 160 páginas, do qual mandei fazer uma edição digital de 50 exemplares, para distribuir pelos meus familiares, que são muitos. Decorria abril de 2013. Assim nasceu O Roxo dos Jacarandás, escolhi este título porque amo essa árvore, porque acho a sua floração linda e fico muito contente por, nos anos trinta ou quarenta do século passado, um silvicultor ao serviço da Câmara ter espalhado pelas avenidas desta Lisboa milhares de Jacarandás, que em maio florescem e alegram as avenidas ditas novas e o Parque Eduardo VII, e a Feira do Livro, que lá ocorre por essa data.
 Quando peguei no primeiro exemplar, achei-o bonito e gostoso, mas principalmente senti que nascera o escritor serôdio DeMoura.  Tinha eu 89 anos. Pouco me importava se o texto era piegas ou menos bem escrito, que expressões brasileiras ferissem os ouvidos sensíveis dos leitores, afinal todos amigos ou familiares.
 Tinha consciência que a minha novela estava a anos-luz de dezenas de grandes escritores preferidos que toda a vida li desde novo: Zola, Fitzgerald, Tolstoi, Tchecov, Hemingway, O’Henry, Dickens, Durrel, Victor Hugo, Zola, Gogol, Jack London, Dos Passos, Steinbeck, Dostoievski, Martin du Gard, Conrad, Remarque, Mark Twain, Moravia, Óscar Wilde, Stefan Zweig, Thomas Mann, Faulkner, Axel Munthe, Saint-Exupéry e outros. Sem falar nos mais recentes, como Kundera, Yourcenar, Auster, Amis,  Capote, Duras, De Lillo, Henry Miller, Nabokov, Anaïs Nin, Virginia Wolf, etc. Nem citei os sul-americanos, de que bastaria nomear Garcia Marquez, Vargas Llosa, Sepúlveda, Borges, Bolaño, Cortázar, Carpenter, Neruda, Rulfo, Fuentes e Paz. Não, não esqueci os portugueses e brasileiros, Lídia Jorge, Cardoso Pires, Jorge de Sena, Eça, Torga,  Namora, Redol, Aquilino Ribeiro, Pereira Gomes, Ferreira de Castro, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Jorge Amado, Ruben Fonseca, Saramago, Ubaldo Ribeiro e, obviamente, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Dalton Trevisan, e o múltiplo Pessoa.
  O que eu quero dizer é que tinha a consciência do absurdo que seria pensar em publicar normalmente essa novela, perante a lembrança muito forte da leitura desses excelentes autores que li e reli por décadas. Bastaria a recordação de meia dúzia de obras, como Morte em Veneza, Ana Karenina, O Livro de San Michele, A Oeste Nada de Novo, Cem Anos de Solidão, Olhai os Lírios do Campo ou Brekfast at Tyfany’s, para ter a noção do abismo entre essas obras e a minha modesta novela e, desde logo, decidir que não a publicaria para o público em geral.
Mas, a verdade é que gostei muito de escrever, de criar personagens, manejá-los como se eu fosse um Deus da Mitologia Grega, com poderes de decidir a vida das criaturas, fazê-las amar ou odiar, viver ou morrer, rir ou chorar. Só imaginar… e teclar. Foi gostoso imaginar cena a cena, diálogo a diálogo, e no meio da noite, mentalmente, alterar tudo, e ficar com vontade de me levantar para escrever. Envolvi-me muito, e foi um lenitivo magnífico, até porque nesse tempo estava enfrentando uma ação judicial, por mim iniciada, mas que me tumultuava bastante devido à delonga e injustiça.

                                   ***

Sem comentários:

Enviar um comentário