3. OS JACARANDÁS DE
LISBOA
Acabadas as listas,
senti-me um potencial usuário de computador. Muito limitado, é certo, pois não
viajo na net nem busco os outros quadradinhos desafiantes e aliciadores do ecrã. Limito-me ao Word e ao Excel e,
claro, a fazer e receber mails. Para mim é uma máquina de escrever
sofisticada, graças à minha ignorância. Mas mesmo assim um mundo novo e amplo
para quem só usava a caneta Bic. Dirão que há manuais, mas esta é o tipo
de leitura que abomino. Além de chatos são mal escritos, pois o são por
especialistas que, por saberem muito, não sabem explicar o simples e não sabem
escrever. Deveriam ser elaborados por um técnico e um literato, claro não um
escritor premiado. Tenho uma coleção de manuais que nunca li, nunca consultei,
da máquina de filmar, da de fotografar, do iPhone, de aparelhos de
televisão, da máquina de barbear, dos carros, etc. Talvez venha a tirar uma
semana de férias só para ler esses manuais, e se quiser estender os meus
conhecimentos aos segredos das máquinas domésticas (de lavar roupa e louça, do
micro-ondas, do aspirador e de muitas outras), necessito de mais outra semana
de férias.
Certo dia, li num
jornal que um hacker tinha entrado no sistema informático do Ministério
da Marinha Norte-Americana, por certo muito blindado, e que tinha feito o
diabo. Achei engraçado o feito deste David moderno contra um Golias ainda mais
forte do que o bíblico, e daí surgiu-me a ideia de um conto muito simples: um
escritor está a escrever um romance e um hacker entra de quando em
quando no computador dele e muda o texto, piora ou melhora, não interessa.
Claro que o escritor fica intrigado e indignado, mas uma noite tropeça num jarrão que a mulher deixara no meio do
corredor, acorda e constata que é sonâmbulo e que era ele próprio que se
levantava e emendava os seus textos escritos de dia.
Em janeiro de 2013, sentei frente ao meu Toshiba e comecei a
escrever o que tinha imaginado. Pouco depois, entra de roldão uma cena de uma
senhora num leito de um hospital, nos momentos finais, rodeada daquela
parafernália de aparelhos, médicos e enfermeiras, hoje habitual e muitas vezes
absolutamente inútil e, até, um esquema mal-intencionado. Descrevi o quadro
como o estava a ver até que percebi, surpreendido, que era a cena que tinha
vivido pouco tempo antes, ao acompanhar o caso do meu irmão Rogério
hospitalizado, nas mesmas condições, que terminou pelo seu falecimento à minha
frente, rosto com rosto, angustiante. O que eu tinha escrito era idêntico ao
que eu tinha assistido e sofrido. Hesitei se continuava ou não, até que
desisti, deixei a estória parada. Não me sentia bem em colocar no papel aqueles
momentos tão traumáticos e tão íntimos. Parecia-me um desrespeito à memória do
irmão que amei muito.
Algum tempo depois
(fevereiro), venci a minha indecisão e voltei ao teclado. Melhorei o texto e
transformei-o num filho que assiste à morte da mãe nessas condições, sendo que
o filho cursava numa universidade inglesa. Continuei com o velório e a
cremação, nas condições a que eu assistira, com bastante perplexidade pelo
atual ritual do culto dos mortos. A seguir apresento o filho na sua dor e desconforto
e, ao mesmo tempo, na sua tentativa de entender a vida do pai, também já
falecido, e da mãe, dos quais ele se afastara tanto, em razão dos estudos, mas
que amara, e com os quais se sentia como que em dívida pelo afastamento. Ao
mesmo tempo, a descoberta paulatina do seu passado e o reencontro com uma
vizinha e amiga de infância, parcialmente incapacitada.
Enquanto permanece em
Lisboa, o estudante começa a escrever um romance e também acontecia que alguém
entrava e corrigia o texto dele, ele percebia que melhorava, mas queria
descobrir. (Claro, não vou aqui revelar o mistério.)
Usei Campo de Ourique
como palco de tudo isto, pois é o bairro onde eu nasci e me criei, onde mora
toda a minha família, e era para eles que eu estava a escrever. Em dois meses
tinha um romance de 160 páginas, do qual mandei fazer uma edição digital de 50
exemplares, para distribuir pelos meus familiares, que são muitos. Decorria
abril de 2013. Assim nasceu O Roxo dos Jacarandás, escolhi este título
porque amo essa árvore, porque acho a sua floração linda e fico muito contente
por, nos anos trinta ou quarenta do século passado, um silvicultor ao serviço
da Câmara ter espalhado pelas avenidas desta Lisboa milhares de Jacarandás, que
em maio florescem e alegram as avenidas ditas novas e o Parque Eduardo VII, e a
Feira do Livro, que lá ocorre por essa data.
Quando peguei no
primeiro exemplar, achei-o bonito e gostoso, mas principalmente senti que
nascera o escritor serôdio DeMoura.
Tinha eu 89 anos. Pouco me importava se o texto era piegas ou menos bem
escrito, que expressões brasileiras ferissem os ouvidos sensíveis dos leitores,
afinal todos amigos ou familiares.
Tinha consciência que
a minha novela estava a anos-luz de dezenas de grandes escritores preferidos
que toda a vida li desde novo: Zola, Fitzgerald, Tolstoi, Tchecov, Hemingway,
O’Henry, Dickens, Durrel, Victor Hugo, Zola, Gogol, Jack London, Dos Passos,
Steinbeck, Dostoievski, Martin du Gard, Conrad, Remarque, Mark Twain, Moravia, Óscar
Wilde, Stefan Zweig, Thomas Mann, Faulkner, Axel Munthe, Saint-Exupéry e
outros. Sem falar nos mais recentes, como Kundera, Yourcenar, Auster, Amis, Capote, Duras, De Lillo, Henry Miller,
Nabokov, Anaïs Nin, Virginia Wolf, etc. Nem citei os sul-americanos, de que
bastaria nomear Garcia Marquez, Vargas Llosa, Sepúlveda, Borges, Bolaño, Cortázar,
Carpenter, Neruda, Rulfo, Fuentes e Paz. Não, não esqueci os portugueses e
brasileiros, Lídia Jorge, Cardoso Pires, Jorge de Sena, Eça, Torga, Namora, Redol, Aquilino Ribeiro, Pereira
Gomes, Ferreira de Castro, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis,
Jorge Amado, Ruben Fonseca, Saramago, Ubaldo Ribeiro e, obviamente, Clarice
Lispector, Érico Veríssimo, Dalton Trevisan, e o múltiplo Pessoa.
O que eu quero dizer
é que tinha a consciência do absurdo que seria pensar em publicar normalmente
essa novela, perante a lembrança muito forte da leitura desses excelentes
autores que li e reli por décadas. Bastaria a recordação de meia dúzia de
obras, como Morte em Veneza, Ana Karenina, O Livro de San Michele, A Oeste Nada
de Novo, Cem Anos de Solidão, Olhai os Lírios do Campo ou Brekfast at Tyfany’s,
para ter a noção do abismo entre essas obras e a minha modesta novela e, desde
logo, decidir que não a publicaria para o público em geral.
Mas, a verdade é que gostei muito de escrever, de criar
personagens, manejá-los como se eu fosse um Deus da Mitologia Grega, com
poderes de decidir a vida das criaturas, fazê-las amar ou odiar, viver ou
morrer, rir ou chorar. Só imaginar… e teclar. Foi gostoso imaginar cena a cena,
diálogo a diálogo, e no meio da noite, mentalmente, alterar tudo, e ficar com
vontade de me levantar para escrever. Envolvi-me muito, e foi um lenitivo
magnífico, até porque nesse tempo estava enfrentando uma ação judicial, por mim
iniciada, mas que me tumultuava bastante devido à delonga e injustiça.
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